PROCESSO FAMILIAR: Reforma do Código Civil, mito do “mini” cônjuge e combate à desigualdade de gênero

PROCESSO FAMILIAR: Reforma do Código Civil, mito do “mini” cônjuge e combate à desigualdade de gênero

A comissão de juristas encarregada pelo Senado de elaborar um anteprojeto de lei para reforma do Código Civil entregou ao presidente Rodrigo Pacheco o resultado do seu trabalho, para a oportuna e percuciente análise do Poder Legislativo quanto à sua conveniência e juridicidade.

Como relator  da subcomissão de sucessões, coube-me coordenar os debates, ouvir os especialistas e compilar as sugestões recebidas no que tange ao Livro V da Parte Especial do CC.

O objetivo buscado foi o de aprimoramento e simplificação das regras atinentes à sucessão hereditária, a partir de pesquisas realizadas perante a sociedade civil, a comunidade jurídica, a jurisprudência, os enunciados das Jornadas promovidas pelo Conselho da Justiça Federal e as experiências legislativas de outros países.

Nessa perspectiva, um dos primeiros temas tratados no texto proposto diz respeito aos direitos sucessórios de cônjuges e companheiros.

A nossa maior preocupação, nessa matéria, foi a de atender às demandas da comunidade, para solução ou prevenção de conflitos, que conturbam a vida das famílias e atrasam a tramitação dos inventários, e, por isso, a sugestão para afastar a condição de herdeiro necessário (artigo 1.845) e, também, o direito de concorrência sucessória (artigo 1.829, I e II) de cônjuges e companheiros com descendentes e ascendentes, principalmente quando o casamento ou a união estável estivessem submetidos ao regime de separação convencional de bens, alvo de grande rejeição da população em geral.

Ninguém entendia que a escolha do casal pelo regime de incomunicabilidade de bens não se estenderia para após a morte, muito menos se compreendia a lógica do legislador em assegurar a concorrência justamente sobre os bens particulares, em relação aos quais o viúvo ou a viúva nada contribuíram.

A situação torna-se ainda mais dramática nas famílias recompostas, em que o novo cônjuge, normalmente mais jovem ou com menos tempo de casamento, pode concorrer com os filhos unilaterais do falecido, sobre o patrimônio construído no relacionamento anterior ou adquirido por sucessão.

Anteprojeto

O anteprojeto encaminhado ao Senado corrige distorções do Código Civil de 2002,  que havia promovido o cônjuge ao posto de principal personagem da sucessão hereditária [1], restaurando o equilíbrio entre os herdeiros legítimos, chamados a suceder de acordo com a sua classificação na ordem da vocação hereditária.

O cônjuge, nos termos da proposição legislativa, passa a ser herdeiro exclusivamente da terceira classe e só recolherá a herança, no âmbito da sucessão legítima, na ausência de descendentes (herdeiros de primeira classe) e de ascendentes (herdeiros de segunda classe), afastando-se o direito concorrencial, que tantos problemas ocasionou nessas últimas duas décadas. Além disso, cônjuges e companheiros passam a ser herdeiros facultativos, o que implica a possibilidade de serem excluídos da sucessão por ato voluntário do testador.

A escolha legislativa de suprimir o direito concorrencial, retornando, o artigo 1.829 do CC/2002, parcialmente, à redação do art. 1.603 do CC/1916, como não poderia ser diferente, logo foi alvo de críticas. Fala-se que a alteração causará maior impacto nas mulheres do que nos homens, agravando a desigualdade de gênero que ainda subsiste no Brasil.

Há quem diga que foi “criada a figura de um ‘mini cônjuge’, sem direitos, salvo se inexistirem descendentes e ascendentes”  e que “tal sistema não contribuirá para o alcance da igualdade de gênero e, por consequência, da igualdade social, norte que deve permear toda e qualquer alteração legislativa” [2].

Cabe esclarecer, de proêmio,  que a proposta apresentada não significa um  retorno ao período em que vigorou o Código Civil de 1916, muito menos à Lei Feliciano de Pena, de 1907 [3]. Em primeiro lugar, porque a sociedade daquela época era outra, completamente diversa, que outorgava ao “Homem-Marido-Cabeça do Casal-Chefe da Sociedade Conjugal” privilégios e recompensas que refletiam o poder de um sexo sobre o outro.

Predominava uma ideologia masculina e heteronormativa que justificou a construção de uma relação jurídica e sociológica entre masculinidade e autoridade. A regulação jurídica da família, de certa forma, legitimava essa supremacia sexista.

O Livro do Direito das Sucessões, do Código Civil de 2002, inspirado na reforma do Código Civil Português de 1977, foi concebido com os olhos voltados para esse modelo de coletividade, patriarcal, misógina e pré-divórcio.

Lembre-se que, até 1977, o casamento era indissolúvel no Brasil, mantendo a legislação os resquícios coloniais das Ordenações do Reino, as quais, impregnadas pelo Direito Canônico, consideravam o casamento um sacramento, sem possibilidade de dissolução.

Nesse cenário, os privilégios sucessórios atribuídos ao cônjuge sobrevivente (viúvo ou viúva) eram justificados e imperiosos, pois entre os integrantes da família nuclear, era o consorte aquele que ficava ao lado do outro até a hora da morte, não obstante, em muitos casos, o vínculo de afetividade que orienta a ordem da vocação sucessória sequer existisse.

O pré-legislador setentista, seguido pelo codificador de 2002, optou por premiar, com a condição de herdeiro necessário, que limita o poder de disposição sobre o patrimônio; e com a concorrência sucessória, que reduz a herança dos descendentes; aqueles que, presumivelmente, se prestariam assistência moral recíproca “até que a morte os separasse”.

Esse olhar protetivo para o casamento, e que paulatinamente se estendeu à união estável, não se mostrou adequado à sociedade do século 21, notadamente após 2010, com a EC 66, a facilitar de tal forma a dissolução do vínculo conjugal que, nos dias atuais, o casamento  se transformou em um instituto quase provisório. É muito mais fácil se divorciar do que se casar.

Os relacionamentos conjugais se sucedem e se multiplicam com diferentes parceiros, e aquele que tiver a sorte de ocupar a posição de cônjuge ou convivente ao tempo da abertura da sucessão, pouco importando o tempo de conjugalidade, se tornará o grande premiado, em detrimento dos próprios filhos do autor da herança.  Salta aos olhos a injustiça desse paradigma.

Ao mesmo tempo, e felizmente, o espaço de cidadania feminino tem crescido significativamente. De uma condição servil de tutela em relação a pais e maridos, a mulher vem cada vez mais garantindo uma participação maior na vida pública e privada da comunidade, o que igualmente se reflete na sucessão.

A isonomia entre homem e mulher, nos relacionamentos conjugais, vem sendo alcançada, ora pela sua crescente autonomia e independência profissionais, ora pelas regras que regem o patrimônio familiar (regime de bens), a privilegiar, sempre, a presunção de comunhão.

Esse é o contexto hodierno nas grandes cidades, marcado, simultaneamente, pela expansão das famílias recompostas e pelo crescente empoderamento feminino. A reforma do Código Civil foi concebida e pensada sob essas premissas.

Nessa conjuntura, o reposicionamento sucessório de cônjuges e companheiros, em benefício de descendentes e ascendentes, pari passu com uma maior autonomia privada atribuída ao autor da sucessão, mostra-se conveniente e contemporâneo com as novas realidades da família brasileira.

Acrescente-se que ao anteprojeto não se pode imputar o estigma de reduzir direitos de cônjuges e companheiros, pois se o texto projetado, por um lado, requalificou a vocação sucessória decorrente da conjugalidade, de outro, concedeu àqueles sujeitos outros direitos não previstos no CC/2002.

A começar pelo usufruto sobre determinados bens da herança (legado ex lege), instituído para garantir a subsistência do cônjuge ou convivente sobrevivente que comprovar insuficiência de recursos ou de patrimônio, previsto no § 1º do art. 1.850 e que se somará ao direito real de habitação.

Ainda que o pressuposto “insuficiência de recursos ou de patrimônio” caracterize um conceito jurídico indeterminado, o seu adequado preenchimento pelo operador do Direito possibilitará uma proteção ao viúvo ou à viúva, “conforme o caso concreto”, e sem limitação a uma parcela do patrimônio, como ocorria com o usufruto vidual do CC/1916. Propositadamente se optou por não restringir o objeto do usufruto, que recairá sobre tantos bens quantos bastem para subsidiar a subsistência digna ao supérstite economicamente vulnerável [4].

A proteção sucessória de cônjuges e conviventes é complementada pelas propostas apresentadas na disciplina dos regimes de bens, locus mais apropriado à inserção de medidas de combate à desigualdade de gênero, pois enfeixam regras que disciplinam as relações patrimoniais do casal durante a vida, período em que as assimetrias se manifestam e precisam ser suprimidas e equalizadas.

É o caso dos artigos que regulam a fixação de alimentos compensatórios, os quais também se prestarão para corrigir distorções materiais em caso de dissolução da sociedade conjugal por morte.

No regramento da comunhão parcial de bens, foi prevista a comunicação da valorização das quotas ou das participações societárias ocorrida na constância do casamento ou da união estável, ainda que a aquisição das quotas ou das ações tenha ocorrido anteriormente ao início da convivência do casal, incluindo as situações em que a valorização decorre de lucros reinvestidos, atualmente considerada incomunicável de acordo com precedentes do STJ. Considerando que na maioria das famílias, o homem é o titular da empresa, a medida proporcionará inegável benefício patrimonial à mulher.

E,  até mesmo no regime de separação total de bens, foi prevista a partilha de bens havidos por ambos os cônjuges ou conviventes com a contribuição econômica direta de ambos, respeitada a sua proporcionalidade, além de uma compensação econômica pelo trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, a ser fixada pelo juiz, na falta de acordo, tudo isso a ratificar e corroborar a  preocupação em proteger e valorizar o trabalho feminino dentro de casa, o que se convencionou chamar de “dupla jornada da mulher”.  Diversas outras proposições reforçam essa ideia, a permear todo o livro do Direito de Família.

Em conclusão, as mudanças efetivadas na sucessão de cônjuges e companheiros, muito longe de instituir as figuras de um “mini cônjuge” ou de um “mini convivente”, desfalcado de direitos sucessórios, promove a requalificação desses sujeitos em consonância com o corrente patamar evolutivo da sociedade brasileira, conferindo-lhes outros direitos, privilégios e prerrogativas, especialmente na seara do Direito de Família, hábeis a combater a desigualdade de gênero.

 

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[1] Com o CC/2002, o cônjuge sobrevivente assumiu lugar de destaque, passando a concorrer na herança com os descendentes e ascendentes, inclusive no regime de separação absoluta de bens (art. 1.829), além de ostentar a qualidade de herdeiro necessário (art. 1.845).  Esses novos direitos atribuídos ao cônjuge (e, de quebra, ao companheiro, segundo alguns autores) não foram bem compreendidos pela sociedade. A concorrência na herança com descendentes e ascendentes (arts. 1.829, I e 1.837), e o lugar de destaque como herdeiro necessário (art. 1.845), pareceram incoerentes com a realidade atual de fluidez dos relacionamentos, de facilitação do divórcio e de prevalência das famílias recompostas no cenário das entidades familiares. A ideia de um “super cônjuge”, protagonista da sucessão, era contemporânea da sociedade pré-divórcio, marcada pelo casamento indissolúvel, em que o integrante do núcleo familiar mais longevo era sempre o cônjuge, forçado a ficar ao lado do outro “até que a morte os separasse”.

[2] NEVARES, Ana Luiza Maia Nevares. Do “super” cônjuge ao “mini” cônjuge: A sucessão do cônjuge e do companheiro no anteprojeto do Código Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/406048/do-super-conjuge-ao-mini-conjuge-a-sucessao-do-conjuge

[3] A partir da Lei nº 1.839/1907, chamada de Lei Feliciano Pena, o cônjuge passou a figurar no terceiro lugar da ordem de vocação hereditária, suplantando os colaterais, os quais ainda foram limitados até o quarto grau. No sistema das Ordenações, o cônjuge só seria chamado a suceder se não houvesse colaterais até o décimo grau.

[4] A propósito, a preocupação com as pessoas em situação de vulnerabilidade também  se concretizou  com a ampliação do direito real de habitação, de modo a extrapolar a titularidade de cônjuges e companheiros, dando maior concretude ao seu caráter protetivo, passando a alcançar, igualmente, outros herdeiros ou sucessores vulneráveis cujas moradias dependiam daquela do autor da herança por ocasião da abertura da sucessão, podendo o referido benefício ser exercido coletivamente, enquanto os titulares não adquirirem renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia, ou não casarem nem constituírem união estável.

 

  • é doutor em Direito Civil (USP), mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP), membro da Comissão Especial do Senado para Reforma do Código Civil (relator da subcomissão de sucessões), professor e advogado/ Foto: reprodução

 

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