Ativistas indígenas e quilombolas do Brasil estão entre os mais vulneráveis à violência – Fato Novo

Ativistas indígenas e quilombolas do Brasil estão entre os mais vulneráveis à violência – Fato Novo

 

Em entrevista exclusiva à Fórum, a autora de uma das obras mais importantes do Brasil no século XXI relata como foi furar a bolha do mercado editorial e romper com a tese de “literatura de nicho”

Lançado em 2006, o livro “Um Defeito de Cor”, romance histórico escrito por Ana Maria Gonçalves, narra a saga de Kehinde que é sequestrada em Daomé (atual Benin) e vendida como escrava no Brasil. Com uma escrita ágil e densa, a autora nos conta a história do Brasil de oito décadas, inserindo momentos históricos de formação do país por meio de tramas cotidianas, a violência da escravidão e a busca pela liberdade.

Após o seu lançamento, “Um Defeito de Cor” se tornou rapidamente uma das principais obras literárias do Brasil e, à medida que o tempo passava, ganhava mais destaque e leitores. Prova disso é que a monumental obra de Ana Maria Gonçalves se tornou tema do samba-enredo 2024 da Escola de Samba Portela, fazendo com que a publicação ficasse por semanas entre as mais vendidas e esgotasse três edições.

Na conversa que você confere a seguir, Ana Maria Gonçalves fala sobre a exposição que o livro acabou de ganhar no Sesc de São Paulo – e que fica em cartaz até dezembro – e como a obra “Um Defeito de Cor” mostrou às grandes editoras que histórias escritas por pessoas negras não eram “literatura de nicho”.

“O livro ‘Um Defeito de Cor’ é muito lido por pessoas brancas. Ele rompe uma bolha de mercado que antes achava que a literatura feita por pessoas negras e com temática negra interessava apenas a pessoas negras”, destaca Ana Maria Gonçalves com exclusividade à Fórum.

Além disso, Ana Maria Gonçalves afirma que a sua obra “Um Defeito de Cor” disputa a história oficial do país. “Ele está ali para disputar oficialmente com a história do Brasil. Com a história que não foi contada até hoje. Ou seja, é a história do Brasil contada através do ponto de vista de uma mulher negra”, afirma.

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Fórum – Gostaria que você contasse como surgiu a ideia da exposição inspirada no livro “Um Defeito de Cor”?

Ana Maria Gonçalves – A ideia foi do Marcelo Campos e da Amanda Bonan, que são dois curadores lá do Museu de Arte do Rio, do MAR, e eles me procuraram já com a ideia e me convidaram para fazer uma curadoria com eles.

Desde o início, a ideia foi fazer uma transposição ou uma transcrição do que seja o livro. Mas sempre com autores em conversa com as temáticas das quais o livro trata. A exposição está dividida mais ou menos nos capítulos em que o livro está dividido, mas ela vai mais para um lado temático do que, na verdade, da história do livro em si. Então, a ideia era: se no primeiro capítulo a gente vai falar, por exemplo, de como era a vida antes da personagem central do livro ser capturada para ser vendida como escrava, como era essa África, então a gente foi achar artistas que já estejam trabalhando essa temática e com esse tema que também os incomoda ou estimula, principalmente como artistas negros vivendo em países que de alguma maneira foram tocados pela escravidão, seja em países africanos, ou seja aqui no Brasil, nos Estados Unidos, Caribe, enfim, a ideia era achar gente cuja obra esteja falando dos mesmos assuntos do livro, mas cada um a sua maneira. A ideia também era trazer essa multiplicidade de vozes que são necessárias, que são bem-vindas e que enriquecem o contar de qualquer história.

Fórum – O quão distante e o quão próxima a história de “Um Defeito de Cor”, a trama da Kehinde, está do Brasil de hoje, da África de hoje, como você analisa isso?

Ana Maria Gonçalves – Eu acho que é uma história que ainda não acabou. Ela começa em 1806, então a gente está falando aí de alguns séculos, da continuidade dessa história que, enquanto a gente realmente não conhecê-la muito bem, não entender o que foi a escravidão, sem os filtros da dita história oficial, contada pelos governos e contadas pelas pessoas brancas, principalmente pelos homens brancos, enquanto a gente não entender realmente o que foi aquela vivência e quais são as implicâncias da escravidão nos dias atuais, é uma história que não vai ter fim, que a gente não vai conseguir botar um ponto final nela.

Então, eu acho que ainda é um tema extremamente atual se a gente pensar, por exemplo, nos tumbeiros, os navios que traziam os corpos negros para o fim da liberdade, como a gente pensar, por exemplo, nos camburões de hoje em dia, também levando os corpos negros para o fim da liberdade, de alguma determinada maneira, né? Está tudo interligado. São fios que, se a gente puxar lá de trás, a gente vai entender muito bem como eles acabam hoje em dia.

Fórum – A primeira edição de “Um Defeito de Cor” é de 2006 e nós acompanhamos nos últimos anos o surgimento de uma série de editoras que passaram a publicar autoras e autores da lusofonia, de variados países africanos e também escritores negros brasileiros. Podemos dizer que o seu livro abriu esse caminho?

Ana Maria Gonçalves – Olha, eu acredito que ele possa ter contribuído para desmistificar o mercado, e aí eu estou dizendo da parte institucional mesmo, o mainstream, as grandes editoras. Porque a gente sempre teve um mercado paralelo de editoras negras trabalhando com muito custo, publicando tanto autores nacionais como fazendo projetos de tradição coletiva e publicação de autores estrangeiros que a gente queria ler aqui e que não estava no radar das grandes editoras.

Então eu acredito que “O Defeito de Cor” tem ajudado no sentido de falar, “olha, existe mercado para livros com essas histórias ou com essas temáticas”. Ele rompe uma bolha e vai ser lido. “O Defeito de Cor” é um livro muito lido por pessoas brancas. Ele rompe uma bolha de mercado que antes achava que a literatura feita por pessoas negras e com temática negra interessava apenas a pessoas negras.

Isso é uma das minhas lutas: dizer que “O Defeito de Cor” não é uma literatura de nicho, não é uma história de nicho. Ele está ali para disputar oficialmente com a história do Brasil. Com a história que não foi contada até hoje. Ou seja, é a história do Brasil contada através do ponto de vista de uma mulher negra.

Para você ter uma ideia do que era o mercado antes disso e eu acredito que o interesse também aumentou porque na sociedade brasileira a gente passou a discutir temas que antes eram só discutidos, sei lá, dentro de movimentos negros ou dentro de ambientes mais restritos como, por exemplo, as cotas em 2010… E eu acho que essa discussão… Para a gente entender o contexto histórico em que os problemas que a gente estava discutindo: eu sou a oitava mulher negra a publicar um romance no Brasil. A primeira foi a Maria Firmina dos Reis, com “Úrsula”, em 1853. Aí tiveram seis, que eu não sei te dizer a ordem. Essa é uma pesquisa que vai até 2016. E nos dez anos seguintes, mais onze publicaram. Então eu acredito que, com certeza, pode ter sido um marco aí, né? Do mercado mainstream começar a entender que sim, havia público. Há mercado para as histórias que a gente está contando e querendo contar.

Fórum – Ana, o livro “Um Defeito de Cor” tem mais de 800 páginas e é um sucesso de vendas e críticas. Virou tema do samba-enredo 2024 da Portela, sei que há interesse em adaptá-lo para o audiovisual. Hoje, como você analisa a trajetória do livro?

Ana Maria Gonçalves – Eu sempre digo, parafraseando a Toni Morrison, que é a pessoa que eu sempre que quando eu crescer, eu quero ser igual a ela… A Toni Morrison dizia que ela escrevia os livros que ela tinha vontade de ler e nunca tinha encontrado. Era essa exatamente a expectativa que eu tinha quando eu fui escrever “O Defeito de Cor”. Eu estava tentando me entender como mulher negra no Brasil e não achava essa história que me falasse de onde eu vim. Eu não tinha um plano para o livro. Eu queria publicar e achava que ele encontraria outros leitores e outras leitoras que também se identificariam com a vontade de conhecer a própria história. A história dos seus antepassados aqui com a gente.

Eu acredito que inicialmente nem a editora acreditava tanto nele. E ele realmente ficou meio a própria sorte na editora durante muito tempo. Ele começou a ser melhor divulgado depois que a Lívia Viana, que hoje é minha editora lá dentro da Record, realmente pegou o livro para cuidar. Ela falou, “não, deixa eu cuidar desse livro aqui.”

E começou uma maior divulgação dele, tanto da parte da imprensa quanto da participação em festivais. Há muito tempo ela estava querendo fazer uma edição comemorativa como a gente fez a do ano passado, uma edição especial com obras da Rosana Paulino.

Fórum – Como foi ter o seu livro transformado em samba-enredo da Portela?

Ana Maria Gonçalves – Eu venci na vida, né? Hahahaha… Zerei a internet. Porque assim, a literatura eu acho que é uma das artes mais elitistas que tem. Principalmente se a gente pensar de novo nesse mercado de editoras mainstream. É um mercado de homens brancos, publicando homens brancos, na sua enorme maioria. Livro é extremamente caro.

Eu adoraria que a visibilidade do livro e minha como autora ajudasse a gente a pensar uma política pública de livro para o Brasil. Onde a gente pudesse realmente colocar livro na cesta básica. Porque eu acho que é um tipo de alimento extremamente necessário para a gente começar… para a cidadania de cada um.

Mas sobre a Portela: eu acho que ao se juntar com uma das manifestações culturais, artísticas, intelectuais, profissionais mais populares que a gente tem, que é o Carnaval, eu acho que beneficia muito a literatura. O livro chegou a lugares e as pessoas que eu acho que os festivais de literatura, que os meios de comunicação, que os jornais, os rádios, todo mundo que já escreveu ou falou pelo livro nunca conseguiu chegar. O livro se esgotou na Amazon durante o Carnaval. E depois, nas duas semanas seguintes, ele esgotou mais três edições. É uma união que tem muito a se ajudar.

Eu acho que o Carnaval, se nutrindo dessas histórias que a gente tem contado, e a literatura, ao andar de mãos dadas com o Carnaval, com as escolas de samba, e a escola de samba não tem esse nome por acaso, porque eu acho que ela tem muito a ensinar como estrutura, como resistência, como alegria, como cidadania, como sobrevivência à sociedade brasileira, exatamente por essa capilaridade que o samba tem, que a música tem, que o Carnaval tem, e que a literatura sozinha nunca vai ter.

Fórum – A Globo tinha interesse em transformar “Um Defeito de Cor” em minissérie. Como está essa história?

Ana Maria Gonçalves – A Globo ficou com os direitos dele por dez anos. E não saiu. Então, venceu em novembro do ano passado. Eu não renovei, porque eu não acredito mais que ele sairia lá.

Então estou pensando em trabalhar e explorar outras propostas, porque acredito que, sim, é um livro que precisa ser adaptado para o audiovisual também.

Fórum – Existe algum projeto em andamento para adaptá-lo para o audiovisual?

Ana Maria Gonçalves – Existe. Não quero falar muito sobre isso sem ter algo concreto, mas estamos iniciando algumas conversas.

Fórum – Recentemente acompanhamos uma campanha de perseguição e censura ao livro “O Avesso da Pele”, de autoria do Jeferson Tenório. Como você acompanhou isso?

Ana Maria Gonçalves – Isso está relacionado, eu acredito, com essa estrutura, com esse racismo estrutural, e muitas vezes com a intolerância religiosa de pais, professores e diretores, dentro das próprias escolas que deveriam estar promovendo exatamente o contrário.

Sinto muita falta de ver as editoras que nos publicam, como, por exemplo, eu queria muito ter visto uma intervenção mais enérgica, mais firme, da editora que publica o Jeferson Tenório. Porque é só o autor que se manifesta. É o autor que defende sua obra, que busca que seu livro seja lido e respeitado.

Vejo as editoras extremamente caladas após lucrarem com todos os ônus de construírem selos que promovem a diversidade dentro das editoras. E quando essas coisas acontecem, não vejo nenhuma carta de apoio ao autor, nenhuma ação legal com advogados, nada que ofereça suporte contra esse tipo de situação.

Estou ficando muito puta com as editoras que lucram com a temática dos livros e dos movimentos que fazemos. E quando precisamos de apoio, elas fingem que não têm nada a ver com isso. Então, estou muito puta com as editoras e acho que devem ser cobradas neste momento, não só quando estão lucrando mercadologicamente e no marketing, com selos e um grande número de autores negros, LGBT, ou seja, com a diversidade editorial que tanto promovem, mas não defendem quando precisamos, quando somos atacados, como no caso do Jeferson Tenório. Eu realmente gostaria de cobrar a Companhia das Letras neste sentido, para este caso específico, e também as outras editoras com outros autores que passaram por situações semelhantes.

SERVIÇO 

“Um Defeito de Cor” 

Curadoria: Amanda Bonan, Ana Maria Gonçalves e Marcelo Campos 

Abertura: 24 de abril, quarta-feira, às 19h 

Visitação: de 25 de abril a 1º de dezembro de 2024 

Horários: terça a sábado, das 10h30 às 21h; domingos e feriados, das 10h30 às 18h 

Local: Espaço Expositivo (2º andar) | Sesc Pinheiros – Rua Paes Leme, 195 

Grátis | Livre


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Fato Novo com informações e imagem: Revista Fórum

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