Em novo capítulo de uma das maiores disputas trabalhistas da atualidade, a Uber protocolou manifestação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o reconhecimento do vínculo empregatício entre motoristas e a plataforma. Apoiada em trecho da reforma tributária de 2025, a empresa tenta enquadrar os condutores como “nanoempreendedores” e reafirmar seu papel de mera intermediária. Trata-se, porém, de uma manobra para esvaziar direitos trabalhistas em nome de um modelo de negócios que prospera sobre a precarização.
A tese da Uber se sustenta na criação da figura do nanoempreendedor — categoria prevista na nova Lei Complementar nº 214/2025 para pessoas físicas com receita bruta anual inferior a R$ 40,5 mil. A empresa argumenta que essa qualificação reforça a autonomia dos motoristas e afasta qualquer traço de subordinação. Mas o raciocínio ignora propositalmente os elementos concretos da relação de trabalho, que revelam uma dinâmica muito mais próxima do emprego tradicional do que de uma prestação de serviço autônoma.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST), ao reconhecer vínculo em caso concreto, apontou corretamente os sinais de subordinação: o motorista não define preço, nem percentual de repasse, é avaliado constantemente e pode ser desligado unilateralmente. Mesmo a alegada liberdade para aceitar corridas ou definir horários não resiste à realidade: há pressão algorítmica, bloqueios ocultos, metas implícitas e penalizações por recusas — um controle invisível, mas eficaz. O fato de o controle ser feito por tecnologia não o torna menos hierárquico.
A tentativa de enquadrar motoristas como micro ou nanoempreendedores é um retrocesso disfarçado de inovação. É certo que o mundo do trabalho mudou, e as plataformas digitais oferecem novos meios de prestação de serviço. Mas a evolução tecnológica não justifica a revogação silenciosa dos direitos conquistados. Substituir a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) por um contrato de adesão comercial, redigido unilateralmente pelas plataformas, implica um desequilíbrio grave e um convite à exploração.
A proposta da Uber também escancara o desprezo pela proteção social. Afirmar que motoristas podem ser protegidos fora da lógica celetista é, na prática, delegar a eles o ônus de garantir sua própria seguridade, aposentadoria, proteção em caso de acidente, licenças médicas ou maternidade. Em vez de um pacto entre iguais, temos uma plataforma multinacional definindo regras e exigindo fidelidade, enquanto se isenta de qualquer responsabilidade legal com os profissionais que a mantêm funcionando.
Além disso, os argumentos econômicos apresentados — perda de renda, redução de motoristas e impacto no PIB — carecem de comprovação robusta e ignoram os custos humanos da precarização. Defender que os motoristas preferem a informalidade para preservar seus ganhos imediatos é um argumento semelhante ao utilizado, décadas atrás, para justificar o trabalho infantil ou o excesso de jornada. A liberdade econômica, princípio importante da Constituição, não pode ser invocada como escudo para driblar direitos fundamentais.
O STF tem, neste caso, a responsabilidade histórica de dar uma resposta uniforme e coerente a um impasse jurídico que já movimenta mais de 10 mil ações. É hora de o Judiciário reconhecer que há sim uma relação de emprego entre plataformas e motoristas, com todas as suas consequências jurídicas. Não se trata de punir a inovação, mas de enquadrá-la dentro dos marcos civilizatórios mínimos de proteção ao trabalho.
Ignorar o vínculo é legitimar um modelo de negócio construído sobre a ausência de direitos. Reconhecê-lo é um passo necessário para garantir dignidade, segurança e justiça aos milhões de trabalhadores que movem as cidades, enquanto assistem seus direitos escorrerem pelas brechas digitais da legislação.
*Bruno Gallucci é advogado especialista em Direito do Trabalho
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