Imparcialidade em xeque: o papel de Moraes nos inquéritos contra Bolsonaro

Improbidade administrativa e o alcance das sanções
A Polícia Federal indiciou, nesta quinta-feira (21), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outras 36 pessoas pelos crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.
A investigação reuniu mensagens de celular, vídeos, gravações, depoimentos da delação premiada de Mauro Cid e um vasto conjunto de documentos. Em quase dois anos de trabalho, a Diretoria de Inteligência da Polícia Federal organizou um robusto acervo probatório, incluindo a minuta de um decreto golpista que visava instaurar “estado de sítio” no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e o vídeo de uma reunião ministerial na qual Bolsonaro afirma ser necessário “agir antes das eleições”.
O relatório final, com mais de 800 páginas, estrutura os indiciados em seis núcleos da suposta organização criminosa: Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral; Núcleo de Incitação a Militares; Núcleo Jurídico; Núcleo Operacional de Apoio às Ações Golpistas; Núcleo de Inteligência Paralela; e Núcleo Operacional para Cumprimento de Medidas Coercitivas.
As provas foram obtidas por meio de diligências como quebras de sigilo telemático, telefônico, bancário e fiscal, colaborações premiadas, buscas e apreensões, entre outras medidas autorizadas pelo Judiciário.
O relatório foi encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, que, após recebê-lo, deve remetê-lo ao Procurador-Geral da República. Cabe ao PGR oferecer denúncia ou determinar o arquivamento do procedimento investigatório, caso entenda não haver elementos suficientes.
Como o sigilo das investigações ainda não foi levantado, este artigo opta por explorar os possíveis desdobramentos caso a denúncia seja oferecida.
Dois pontos principais emergem: será Alexandre de Moraes o relator prevento para analisar a denúncia?
E, mesmo não sendo relator prevento, estaria ele impedido de participar do julgamento por ter conduzido as investigações?
Para abordar essas questões, é essencial analisar dois pilares do processo penal brasileiro: o princípio da imparcialidade e o sistema acusatório.
A imparcialidade exige que o juiz julgue com base exclusivamente nas provas produzidas durante a instrução processual, livre de preconceitos, predisposições ou influências externas, como pressões políticas ou interesses pessoais. Além de uma obrigação ética, trata-se de um requisito jurídico indispensável para garantir julgamentos justos. Quando um magistrado se encontra psicologicamente comprometido, deve se afastar do caso, declarando-se suspeito ou impedido.
Já o sistema acusatório preconiza a separação clara entre as funções de investigar, acusar e julgar, assegurando transparência e equidade. Nesse modelo, a polícia investiga, o Ministério Público oferece a denúncia, e o juiz atua como árbitro imparcial. Essa divisão de funções visa garantir que o julgador não tenha participado ativamente da coleta de provas, reduzindo o risco de contaminação psicológica.
Entretanto, a atuação de Moraes em diversos inquéritos envolvendo os atos golpistas desafia essa lógica. O Regimento Interno do STF, em seu artigo 43, permite que ministros conduzam investigações em casos de infração penal na sede ou dependências do Tribunal.
No entanto, essa prerrogativa coloca em debate sua compatibilidade com o sistema acusatório.
Durante as investigações, Moraes determinou diligências, autorizou prisões cautelares e medidas constritivas, além de julgar investigados. Essa consolidação de funções compromete sua imparcialidade, como apontado pelo criminalista Aury Lopes Júnior, que afirma: “O magistrado estará mais próximo da imparcialidade na medida em que estiver mais distante da busca da prova.”
Ademais, conforme divulgado, os relatórios indicam que o ministro foi alvo direto de ações clandestinas dos investigados, incluindo monitoramento e supostas tentativas de assassinato. Isso aprofunda o comprometimento emocional do julgador, afastando a necessária equidistância exigida pelo cargo.
Como destacado pelo psiquiatra David Zimerman, em Aspectos Psicológicos da Atividade Jurídica, o juiz deve exercer empatia sem deixar-se contaminar por envolvimentos emocionais. No caso de Moraes, essa empatia se torna inviável, dado o seu envolvimento direto como vítima, conforme divulgado após a deflagração da operação Contragolpe, que resultou na prisão de militares de alta patente e um Policial Federal, que pretendiam atentar contra a vida do Ministro e do presidente Lula.
Para evitar nulidades processuais e fortalecer a percepção de justiça, seria prudente que Moraes se declarasse suspeito ou impedido de julgar eventual denúncia contra os indiciados. Em um Estado Democrático de Direito, mesmo um ministro da Suprema Corte possui limites em seu poder.
 
*Marcelo Aith é advogado criminalista. Doutorando Estado de Derecho y Gobernanza Global pela Universidad de Salamanca – ESP. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidad de Salamanca.

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