Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia Aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós – graduação e cursos preparatórios.
Mauro Cid teria aceitado acordo de “Colaboração Premiada” em investigação levada a termo pelo STF por meio da Polícia Federal e sob o direcionamento do Ministro Alexandre de Moraes. Ocorre que depois dessa prática o suposto “colaborador” teria mantido conversas em mensagens, alegando que foi coagido pela Polícia Federal a concordar com uma versão previamente elaborada sobre os fatos em apuração. [1]
A reação a essa situação foi a decretação da Prisão Preventiva do envolvido sob o pretexto de violação das condições de sua liberdade provisória, bem como sua submissão imediata a interrogatório perante o Ministro Alexandre de Moraes, ocasião em que teria se retratado de suas críticas, vindo a passar mal naquele local, sendo necessário socorro médico. [2]
Segundo consta, não houve por parte do implicado ou de sua defesa questionamento sobre a autenticidade dos áudios, mas apenas a alegação de que se tratava de desabafos pessoais sem maior importância. [3]
De acordo com o exposto, o que ocorreu foi então o seguinte: Mauro Cid fez acordo de “Colaboração Premiada” com a Polícia Federal e prestou depoimentos; posteriormente desacreditou explicitamente tais depoimentos e, especialmente, a voluntariedade de sua suposta “colaboração”. No seguimento é preso e levado à presença do Ministro Alexandre de Moraes, ocasião em que, sob forte abalo, acaba sustentando seus depoimentos e negando coação.
Não se fará aqui nenhuma análise sobre a atuação ilegítima de um magistrado numa investigação, nem sobre a submissão de um militar à Justiça Comum, de um cidadão sem foro privilegiado perante a Corte Suprema, sendo investigado e julgado pelo STF (incompetência absoluta), afora muitas outras ilegalidades que já são tão comuns nesses feitos em andamento, parecendo ser absolutamente inútil sua apresentação e sustentação de sua invalidade jurídica. A respeito disso tudo e muito mais, vale a constatação de Karl Krauss, feita em outra circunstância histórica, mas plenamente aplicável à nossa atual realidade: “O estado em que vivemos é o verdadeiro apocalipse: o apocalipse estável”. [4]
O foco deste trabalho encontra-se na questão da (i)legitimidade e (i)legalidade da suposta “Colaboração Premiada” de Mauro Cid, a qual se escancara, seja pelos seus áudios, seja, especialmente, pelo tratamento empregado ao “colaborador” após o vazamento de tais áudios.
Desde sempre a melhor doutrina e jurisprudência caracterizavam a “Colaboração Premiada” como um “negócio jurídico processual”. [5] Tal entendimento é consolidado normativamente pela Lei 13.964/19 que inclui o artigo 3º.-A no corpo da Lei 12.850/13. [6]
Como se vê, não somente pela doutrina e jurisprudência, mas também pela lei expressa, é reforçado o respeito à voluntariedade do acordo de colaboração, conforme já previa o artigo 4º, caput, da Lei. Ora, se estamos diante de um “negócio” isso significa que ambas as partes devem aderi-lo voluntariamente, sem qualquer tipo de constrangimento ou pressão, preservando-se a autonomia da vontade dos pactuantes. Essa premissa, aliás, foi reforçada pelo STF no Informativo nº 988, senão vejamos:
O relator ressaltou que o estabelecimento de balizas legais para o acordo é uma opção do nosso sistema jurídico, para garantir a isonomia e evitar a corrupção dos imputados, mediante incentivos desmesurados à colaboração, e dos próprios agentes públicos, aos quais se daria um poder sem limite sobre a vida e a liberdade dos imputados. É preciso respeitar a legalidade, visto que as previsões normativas caracterizam limitação ao poder negocial no processo penal. No caso de ilegalidade manifesta em acordo de colaboração premiada, o Poder Judiciário deve agir para a efetiva proteção de direitos fundamentais. Registrou que, em diversos precedentes, a Corte assentou que o acordo de colaboração premiada é meio de obtenção de prova. Portanto, trata-se de instituto de natureza semelhante, por exemplo, à interceptação telefônica. Tendo em conta que o STF reconheceu, várias vezes, a ilegalidade de atos relacionados a interceptações telefônicas, não há motivo para afastar essa possibilidade em ilegalidades que permeiam acordos de colaboração premiada.[7]
E não pode restar dúvida quanto ao fato de que a quebra da “voluntariedade” do acordo, havendo comprovação ou mesmo suspeita de coação, deslegitima e torna ilícito qualquer pacto.
Em nosso estudo anterior sobre o tema, destacamos o “Princípio da Voluntariedade” como um dos mais importantes “vetores do acordo de colaboração premiada”: [8]
As partes não podem ser constrangidas a realizar o acordo de colaboração premiada, sendo vedado ao Delegado de Polícia e ao MP o uso de medidas legais como forma de coação (dentre elas, obviamente, a prisão provisória).
Não se pode olvidar que ordenamento jurídico prevê que a colaboração deve ser “voluntária”. Isso quer dizer que somente vale a colaboração que se dê por ato voluntário do agente e não, obviamente, aquela obtida mediante outros meios de investigação.
O legislador foi sábio ao usar a palavra “voluntariamente” e não “espontaneamente”. Ele livrou os aplicadores e estudiosos do Direito da extenuante controvérsia sobre necessitar ser a colaboração algo que parta da iniciativa própria do colaborador (espontânea) ou poder ser proposta por um terceiro como o delegado ou o promotor (voluntária). Sendo usada a voluntariedade, tanto faz se a colaboração se dá por iniciativa própria do investigado ou se ocorre por proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia.
Na verdade, a maioria da doutrina e da jurisprudência já vem acatando que, por exemplo, na atenuante da confissão, que usa a palavra “espontaneamente”, isso não quer dizer que a atuação tenha de partir somente do íntimo do indivíduo, podendo sim ser incentivada ou mesmo proposta por terceiros. O que valeria, segundo entendimento predominante, mesmo na espontaneidade, seria a sinceridade do agente em colaborar, ainda que fosse convencido por terceiros. Obviamente que esse “convencimento” não pode ser obtido mediante grave ameaça ou violência, o que tornaria tanto a colaboração como eventual confissão provas ilícitas (Lei 9.455/97 e artigo 5º, III, CF c/c artigo 157, CPP). A efetiva prisão processual e/ou sua ameaça também não podem ser utilizadas como uma espécie de “meio de convencimento” contra o colaborador. Se isso ocorre, não existe mais voluntariedade alguma, mas atividade ilícita e coação.
A decisão paradigmática acerca da voluntariedade da colaboração encontra-se no HC 127.483 do STF, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli. Embora o simples fato de o colaborar estar preso não impeça, por si só, a validade do acordo, é preciso atentar para o fato de que haja “liberdade psíquica”, ou seja, não esteja a prisão posta como instrumento coator.
Como aduz Almeida Filho:
A colaboração premiada, que possui natureza de negócio jurídico processual, só é possível quando o colaborador submetido ao regime restritivo da prisão preventiva possuir liberdade para decidir, ou seja, quando não for vítima de coação ou de outros vícios do consentimento que impeçam a livre manifestação da sua vontade. [9]
Capez assevera que a colaboração premiada obtida sem voluntariedade por parte do colaborador é “imprestável juridicamente”, não produzindo qualquer efeito, já que a voluntariedade é “requisito essencial da colaboração”. Destaca que “nas delações feitas após prisões prolongadas, a tendência é dizer o que autoridade quer ouvir, com sérios prejuízos à verdade real”. Ademais, lembra o jurista que a “prisão para delatar, além de ilegal, configura crime de abuso de autoridade” (artigo 9º., da Lei 13.869/19). [10]
Vale lembrar que Mauro Cid foi preso pela primeira vez em 2023, permanecendo encarcerado por 6 (seis) meses e daí surgindo o acordo de colaboração premiada. [11] Depois de sua deslegitimação do “acordo” em áudios, foi detido em menos de 24 horas e convocado para interrogatório perante o Ministro Alexandre de Moraes, ocasião em que, sob nítido abalo emocional, acaba confirmando a “legitimidade” do acordo e é novamente encarcerado.
É evidente que se em algum momento fosse possível acreditar na voluntariedade desse “acordo”, torna-se absolutamente indiscutível que essa alegada vontade não permaneceu intacta. Nesse ponto é possível fazer uma analogia com o crime de estupro. O sim da pessoa para o ato sexual não cria uma obrigação a ele. A qualquer momento em que haja um não, como se diz popularmente, “não é não”. Se o ato sexual se perfaz, após um sim, secundado por um não, há, induvidosamente, crime de estupro. Ninguém negaria isso. No acordo de colaboração o “sim”, a voluntariedade deve informar o ato do começo ao fim, qualquer quebra indica um “não” e o “acordo” perde sua validade jurídica, torna-se imprestável. O que se vê no caso Mauro Cid é um verdadeiro espetáculo de “livre e espontânea coação”, um terrível “Estupro Jurídico”.
As manifestações dos áudios, jamais contestadas por Cid ou seus defensores, não deixam dúvidas acerca de seu “desacordo” com tudo o que foi objeto da suposta “colaboração premiada”. A conduta adequada seria a de reconhecer a nulidade do suposto acordo e jamais a de chamar o “colaborador” a um interrogatório, acenando com sua prisão e indagando da autenticidade do acordo, como numa espécie de pergunta meramente retórica. Pior ainda é expor esse interrogatório pervertido e cínico a público como se pudesse ser a prova de que a colaboração foi válida, quando, na verdade, é o que mais escancara a coação que mata qualquer voluntariedade que se pudesse reconhecer em algum momento.
Nosso mundo jurídico atualmente é um contínuo “faz – de – conta”, um verniz de legalidade num ambiente de política perversa e direito pervertido. [12] Como ensina Agamben:
O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito. [13]
É neste “estado de exceção permanente” que nos encontramos há tempos sem muita perspectiva de recuperação da verdadeira ordem jurídica constitucional e legal.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2ª. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
ALMEIDA FILHO, Agassiz. Prisão Preventida, Colaboração Premiada e Voluntariedade no STF. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jan-12/opiniao-prisao-preventiva-colaboracao-voluntariedade-stf/#:~:text=A%20colabora%C3%A7%C3%A3o%20premiada%2C%20que%20possui,livre%20manifesta%C3%A7%C3%A3o%20da%20sua%20vontade , acesso em 27.04.2024.
BONIN, Robson, BORGES, Laryssa, MATTOS, Marcela. Em áudios exclusivos, Mauro Cid ataca Alexandre de Moraes e a PF. Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/em-audios-exclusivos-mauro-cid-ataca-alexandre-de-moraes-e-a-pf , acesso em 27.04.2024.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Política Perversa e Direito Pervertido –Registros Históricos Para Não Dizer Que Não Falei Das Flores Do Mal. Florianópolis: Estudos Nacionais, 2023.
CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. 3ª. ed. Leme: Mizuno, 2023.
CAPEZ, Fernando. Prisão para delatar, além de ilegal, configura crime de abuso de autoridade. Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-mar-28/prisao-preventiva-para-provocar-delacao-analise-juridica/#:~:text=Conv%C3%A9m%20tamb%C3%A9m%20observar%20ser%20crime,crime%20de%20abuso%20de%20autoridade , acesso em 27.04.2024.
MAURO Cid passa mal e desmaia em depoimento no STF ao saber que seria preso. Disponível em https://www.infomoney.com.br/politica/mauro-cid-passa-mal-e-desmaia-em-depoimento-no-stfao-saber-que-seria-preso/ , acesso em 27.04.2024.
NAVAS, Adolfo Montejo. Pedras Pensadas. Trad. Sérgio Alcides. Cotia: Ateliê Editorial, 2002.
VIANNA, José. Veja detalhes da rotina de Mauro Cid na prisão; segunda detenção do ex – ajudante de ordens de Bolsonaro completou um mês. Disponível em https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2024/04/24/veja-detalhes-da-rotina-de-mauro-cid-na-prisao-segunda-detencao-do-ex-ajudante-de-ordens-de-bolsonaro-completou-um-mes.ghtml , acesso em 27.04.2024.
[1] BONIN, Robson, BORGES, Laryssa, MATTOS, Marcela. Em áudios exclusivos, Mauro Cid ataca Alexandre de Moraes e a PF. Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/em-audios-exclusivos-mauro-cid-ataca-alexandre-de-moraes-e-a-pf , acesso em 27.04.2024.
[2] MAURO Cid passa mal e desmaia em depoimento no STF ao saber que seria preso. Disponível em https://www.infomoney.com.br/politica/mauro-cid-passa-mal-e-desmaia-em-depoimento-no-stfao-saber-que-seria-preso/ , acesso em 27.04.2024.
[3] Op. Cit.
[4] NAVAS, Adolfo Montejo. Pedras Pensadas. Trad. Sérgio Alcides. Cotia: Ateliê Editorial, 2002, p. 83.
[5] CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. 3ª. ed. Leme: Mizuno, 2023, p.731.
[6] “Art. 3º-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)”.
[7] STF, HC 142.205/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 25.08.2020.
[8] CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco, Op. Cit., p. 743 – 744.
[9] ALMEIDA FILHO, Agassiz. Prisão Preventida, Colaboração Premiada e Voluntariedade no STF. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jan-12/opiniao-prisao-preventiva-colaboracao-voluntariedade-stf/#:~:text=A%20colabora%C3%A7%C3%A3o%20premiada%2C%20que%20possui,livre%20manifesta%C3%A7%C3%A3o%20da%20sua%20vontade , acesso em 27.04.2024.
[10] CAPEZ, Fernando. Prisão para delatar, além de ilegal, configura crime de abuso de autoridade. Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-mar-28/prisao-preventiva-para-provocar-delacao-analise-juridica/#:~:text=Conv%C3%A9m%20tamb%C3%A9m%20observar%20ser%20crime,crime%20de%20abuso%20de%20autoridade , acesso em 27.04.2024.
[11] VIANNA, José. Veja detalhes da rotina de Mauro Cid na prisão; segunda detenção do ex – ajudante de ordens de Bolsonaro completou um mês. Disponível em https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2024/04/24/veja-detalhes-da-rotina-de-mauro-cid-na-prisao-segunda-detencao-do-ex-ajudante-de-ordens-de-bolsonaro-completou-um-mes.ghtml , acesso em 27.04.2024.
[12] Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Política Perversa e Direito Pervertido –Registros Históricos Para Não Dizer Que Não Falei Das Flores Do Mal. Florianópolis: Estudos Nacionais, 2023, “passim”.
[13] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2ª. ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 131.
Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia Aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós – graduação e cursos preparatórios.