A NOVA “TESE” DO STF: O “IMPEDIMENTO RELATIVO OU FLUIDO”  

FILIPE MARTINS E A “PILATIZAÇÃO” DA JUSTIÇA

“Seja, porém, o vosso falar: SimsimNãonão; porque o que passa disto é de procedência maligna”.

Mateus 5,37.

Quando se pensa que as distorções jurídicas em uma “Democracia Fake” ou “Ditadura de Spin” [1] chegaram ao seu máximo, eis que sempre surge algo novo.

O Ministro Alexandre de Moraes se declara impedido de atuar no caso que envolve pessoas que supostamente teriam ameaçado seus familiares e, ao mesmo tempo, decreta as prisões preventivas de tais pessoas no mesmo feito sob fundamento diverso. A alegação insólita é a de que o magistrado “dividiu o processo: apesar da declaração de impedimento aos crimes contra sua família, ele continua responsável pela investigação que implica os suspeitos ao crime de abolição ao Estado Democrático de Direito”. [2]

O que Mores faz foi “fatiar” o caso e tomar a decisão que quer mais urgentemente, obnubilando a condição de que os envolvidos seriam os mesmos que, em tese, ameaçam seus familiares e não poderiam ser seus jurisdicionados nem neste caso (ainda que “fatiado”) nem em qualquer outro.

Afirma que decreta as prisões preventivas com relação a alegado crime de abolição ao Estado Democrático de Direito e que se julga impedido quanto ao caso das ameaças a seus familiares. Acontece que essa “divisão” ou “fatiamento” não é cabível ou sequer possível juridicamente ou mesmo faticamente (são as mesmas pessoas e o mesmo feito). Trata-se de manobra caprichosa e insidiosa a fim de simplesmente exercer uma atuação voluntarista que atropela a lei e a Constituição. Um magistrado não pode julgar, em qualquer caso, pessoas que ameaçam, ainda que em tese, seus familiares ou a ele mesmo. O impedimento ou mesmo a suspeição são notórios e incontornáveis.

Não deveria ser necessária a elaboração deste texto para dizer o óbvio, ou seja, que o ‘Princípio da Imparcialidade” não permite que o magistrado julgue ou tome qualquer decisão em casos nos quais ele é vítima ou seus familiares, bem como com relação a seus supostos algozes, não somente no processo específico, mas em qualquer feito. Isso é garantido por diversos diplomas legais internacionais:

o Brasil é signatário de tratados internacionais que expressamente garantem a todo ser humano, de forma igualitária, julgamento por tribunal independente e imparcial, são eles: Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, todos incorporados pela Constituição Federal, nos termos do artigo 5º, §3º. [3]

O artifício espúrio de “separar” um caso de outro, conforme foi manejado, não elide as normativas legais e principiológicas atinentes à matéria. Ao reverso, revelam o intuito deliberado de contornar ilegitimamente o devido processo legal, mediante uma cegueira deliberada com relação ao fato de que os sujeitos passivos da decisão do magistrado são os mesmos em um caso e em outro relativos ao mesmo feito.

Os impedimentos e suspeições previstos no Código de Processo Penal e no Código de Processo Civil são nada mais que emanações ou garantias legais para a concretização do Princípio Constitucional e Convencional da Imparcialidade do Juiz.

O Código de Processo penal é imperativo ao afirmar que o magistrado não pode exercer jurisdição no processo em que ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito (artigo 252, IV, CPP).

Igualmente é peremptório o Código de Processo Civil, aplicável por integração de forma supletiva ou subsidiária ao Processo Penal (inteligência do artigo 3º., CPP). Estabelece o artigo 144, IV, CPC que há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo quando for parte no processo ele próprio, seu cônjuge ou companheiro, ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive.

Observe-se que os casos de impedimento são imperativos e absolutos porque são objetivos e incontornáveis, havendo presunção absoluta de parcialidade do julgador (“jure et de jure”). Não se admite prova em contrário ou discussão. Não se pode confundir impedimento com suspeição. Os casos de suspeição, tanto no CPP como no CPC são de índole subjetiva e, portanto relativos, de modo a admitirem prova em contrário e discussão (“juris tantum”). Mas esses casos de suspeição estão previstos nos artigos 254, I a VI, CPP e 145, I a IV, CPC. O caso em estudo, envolvendo o Ministro Alexandre de Moraes é inequivocamente afeto aos artigos 252, IV, CPP e 144, IV, CPC. Não há margem para reconhecimento de mera suspeição e não efetivo impedimento.

Também não é possível que o magistrado seja, num mesmo contexto, impedido em parte e suspeito em parte. Não existe, por outro lado, “impedimento relativo”, que foi a criação espúria que exsurgiu da decisão tomada pelo Ministro Alexandre de Moraes. Como visto, o impedimento é sempre absoluto. Quando, eventual e impropriamente a doutrina se refere a “impedimento relativo” isso não passa de uma maneira equívoca de fazer menção aos casos de suspeição e não de impedimento propriamente dito. A expressão “impedimento relativo” é uma afronta à lógica, uma expressão autofágica, já que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo de acordo com o Princípio da Não Contradição. A saída seria dizer que o impedimento não é relativo, mas “fluído”, de modo que se metamorfoseia ao bel prazer do magistrado e demais interessados. Porém, é bem perceptível que isso não é admissível seja juridicamente seja, em especial, eticamente. Essa espécie de recurso seria uma clara burla, uma inequívoca manifestação de desonestidade intelectual, uma monstruosidade moral.

Não obstante o fato de que se trata do mesmo feito e das mesmas pessoas, poderia alguém acenar insistindo com a alegação de que no caso da ameaça haveria impedimento e no caso dos “atos antidemocráticos” (sic) haveria mera suspeição nos termos dos artigos 254, I, CPP e 145, I, CPC. Ainda assim a suspeição seria impositiva de afastamento do magistrado sem muita margem para discussão, eis que a indisposição do Ministro contra pessoas que supostamente ameaçam a si e seus familiares é uma obviedade, uma notoriedade que nem sequer necessitaria de mais provas (“notorium non eget probatione” – artigo 374, I, CPC c/c artigo 3º., CPP por integração). Dessa forma até mesmo a relatividade inerente, em regra, aos casos de suspeição restaria afastada pela obviedade da situação fático – jurídica incontroversa.  

Note-se, porém, que seja por impedimento ou suspeição não deveria um magistrado insistir em tomar decisões em casos concretos envolvendo um ou outro instituto, porque ao juiz “não basta ser honesto, é preciso parecer honesto”. A jurisdição deve ser exercida de forma transparente, sendo dever dos magistrados zelar pela sua credibilidade, respeitabilidade, honorabilidade e, em última instância, probidade (inteligência do artigo 11 da Lei 8.429/92 com nova redação dada pela Lei 14.230/21).

No site do Senado Federal encontra-se em exibição artigo conciso da Advogada Constitucionalista, Vera Chemim, publicado originalmente no Correio Brasiliense, com exposição similar a esta na abordagem das questões de impedimento e suspeição de magistrados, inclusive integrantes do Supremo Tribunal Federal. [4] Resta saber que providência tomará o nosso Senado a respeito de mais essa barbaridade jurídica? Até agora o que se vê é inércia quando não conivência.  O que fará a OAB, para além de uma mera “nota” divulgada quando o STF alegou poderem seus membros e outros magistrados julgarem causas envolvendo escritórios de advocacia compostos por seus parentes? [5] Agora a situação é ainda pior: parentes são vítimas, o próprio magistrado é vítima e, mesmo assim, por artifícios pueris sem sustento jurídico e até mesmo lógico, toma a decisão que quer num ato de voluntarismo autoritário. Qual será a providência da OAB?  Inércia, conivência?

Os frutos de tanta inação, como se vê, se multiplicam e são cada vez mais gravosos e audazes, se é que se pode ainda falar em audácia diante da omissão e do laxismo das instituições que deveriam conter e/ou combater os abusos.

REFERÊNCIAS

CHEMIM, Vera. O Impedimento e a Suspeição do Juiz. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/568332/001134667_DeJ_n.20235_Direito_processual_civil.pdf?sequence=1&isAllowed=y , acesso em 02.06.2024.

 

CONSELHO Federal da OAB. Nota sobre o impedimento para a atuação de magistrados. Disponível em https://www.oab.org.br/noticia/61328/nota-sobre-o-impedimento-para-atuacao-de-magistrados , acesso em 02.06.2024.

 

ENTENDA decisão de Moraes de se declarar impedido em caso de ameaças a familiares. Disponível em https://exame.com/brasil/entenda-decisao-de-moraes-de-se-declarar-impedido-em-caso-de-ameacas-a-familiares/ , acesso em 02.06.2024.

 

GURIEV, Sergei, TREISMAN, Daniel. Democracia Fake – A metamorfose da tirania no século XXI. Trad. Rodrigo Seabra. São Paulo: Vestígio, 2024.

NEVES, Felipe Costa Rodrigues, VOLPATO, Marina, VASQUEZ, Paula. A Imparcialidade do Juiz: O que diz a Constituição Federal? Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/constituicao-na-escola/306844/a-imparcialidade-do-juiz–o-que-diz-a-constituicao-federal , acesso em 02.06.2024.

[1] Cf. GURIEV, Sergei, TREISMAN, Daniel. Democracia Fake – A metamorfose da tirania no século XXI. Trad. Rodrigo Seabra. São Paulo: Vestígio, 2024, p. 21 – 23. Os autores indicam a existência até o século XX de “Ditaduras do Medo” ou “Democracias Fake do medo”, na quais os autocratas se impunham pelo terror e violência. No século XXI apontam o surgimento do que denominam de “Democracias Fake de Spin” ou “Ditaduras de Spin”. Usam o termo em inglês (“Spin”) para designar um “giro”, uma “torção”, uma “distorção” ou “manipulação” da realidade, a fim de impor o domínio e simular a existência e vigência de um Estado Democrático de Direito.

[2] Cf. ENTENDA decisão de Moraes de se declarar impedido em caso de ameaças a familiares. Disponível em https://exame.com/brasil/entenda-decisao-de-moraes-de-se-declarar-impedido-em-caso-de-ameacas-a-familiares/ , acesso em 02.06.2024.

[3] NEVES, Felipe Costa Rodrigues, VOLPATO, Marina, VASQUEZ, Paula. A Imparcialidade do Juiz: O que diz a Constituição Federal? Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/constituicao-na-escola/306844/a-imparcialidade-do-juiz–o-que-diz-a-constituicao-federal , acesso em 02.06.2024.

[4] CHEMIM, Vera. O Impedimento e a Suspeição do Juiz. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/568332/001134667_DeJ_n.20235_Direito_processual_civil.pdf?sequence=1&isAllowed=y , acesso em 02.06.2024.

[5] CONSELHO Federal da OAB. Nota sobre o impedimento para a atuação de magistrados. Disponível em https://www.oab.org.br/noticia/61328/nota-sobre-o-impedimento-para-atuacao-de-magistrados , acesso em 02.06.2024.

 

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia Aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós – graduação e cursos preparatórios.

 

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