Ao estabelecer que as big techs provedoras de internet serão responsabilizadas por conteúdos de terceiros quando não tomarem providências após ordem judicial específica, o Marco Civil da Internet não cria uma ilha, isolando-as de todas as demais leis brasileiras.
Essa avaliação é de autoridades e advogados que participaram do XVII Congresso Internacional de Direito Constitucional, sediado pelo IDP, em Brasília. Um dos painéis, intitulado “Responsabilidade dos intermediários de conteúdo”, tratou do tema.
A discussão ganha relevância conforme se aproxima o julgamento da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil pelo Supremo Tribunal Federal, marcado para o dia 27 deste mês.
A depender da decisão, as plataformas terão de fiscalizar os conteúdos publicados e retirá-los do ar mesmo sem intervenção do Judiciário — uma espécie de regulamentação que o Congresso já discutiu, mas sem avançar.
A ministra do Tribunal Superior Eleitoral Edilene Lobo apontou que o artigo 19 do Marco Civil da Internet precisa ser lido em conjunto com tantos outros dispositivos legais e da Constituição, para formar um sistema de proteção aos direitos das pessoas.
“Não é possível lermos o artigo 19 numa espécie de exegese em tiras, como se fosse localizá-lo exclusivamente para dizer que aqui há um bloqueio para o controle da atuação, por exemplo, das plataformas desempenhando sua atividade econômica”, defendeu ela.
Em sua análise, as plataformas deixarem de atuar em casos de conteúdos ilícitos seria o mesmo que, diante da necessidade de socorro de alguém, uma pessoa comum se omitir, alegando que não poderia usurpar a competência exclusiva do médico.
“Não há dúvidas de que o artigo 19, aplicado aos casos de ilícitos e crimes, não pode vendar ou blindar um controle eficaz na direção da proteção dos direitos fundamentais. Senão, como dizia meu pai, cuidaríamos da azeitona e esqueceríamos do pastel.”
Também ministro do TSE, Floriano de Azevedo Marques sustentou que a redação do artigo 19 leva a um equívoco de interpretação: a de que ele serve para combater a censura.
Para ele, isso induz a crer que o dispositivo traz uma imunidade das plataformas que, na verdade, não está na norma. “Elas próprias não se aceitam como terreno de free flow (fluxo livre) de informação. Tanto é que têm termos de uso e filtros. Algumas condutas, para elas, são inaceitáveis.”
Lentes de seu tempo
Presidente do Tribunal de Contas da União, o ministro Bruno Dantas seguiu a mesma linha ao defender que uma lei como o Marco Civil da Internet, sancionada em 2014, deve ser lida com as lentes de seu tempo.
Para ele, quando o artigo 19 diz que as plataformas só serão responsabilizadas por conteúdo de terceiro quando, após ordem judicial, não tomarem as medidas para retirá-lo do ar, isso não afasta outras responsabilizações.
“Quando observamos fenômenos derivados do modelo que a internet acabou por desenvolver, encontramos inúmeras formas que comportam uma responsabilização, eu diria que até superior à civil.”
“O artigo 19 não é uma ilha”, disse a advogada Ana Frazão. “Ele não pode ser considerado o único parâmetro normativo para resolver vários dos problemas que decorrem desse fluxo informacional na internet.”
Ela cita outras leis que devem ser consideradas no contexto da internet, como o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Geral de Proteção de Dados.
“Será que não existe um dever de cuidado das plataformas? O artigo 19 não trata disso, mas ele precisaria tratar, se existe um Código de Defesa do Consumidor que coloca o dever de cuidado no centro do seu sistema protetivo?”, indagou ela.