AVANÇO DA HISTÓRIA: Barroso vota pela descriminalização do aborto, mas julgamento é interrompido de novo

AVANÇO DA HISTÓRIA: Barroso vota pela descriminalização do aborto, mas julgamento é interrompido de novo

A interrupção da gestação deve ser tratada como uma questão de saúde pública, não de Direito Penal. E as mulheres têm o direito fundamental à sua liberdade sexual e reprodutiva.

Com esse entendimento, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso votou, nesta sexta-feira (17/10), pela descriminalização do aborto em qualquer circunstância até a 12ª semana de gestação.

Logo após o voto de Barroso, porém, o julgamento no Plenário virtual foi interrompido por um pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes. Com isso, ele vai recomeçar no Plenário físico do STF, ainda sem data marcada. Mas os votos de Barroso e da relatora do caso, ministra aposentada Rosa Weber, permanecem válido.

Horas antes, Barroso havia cancelado o seu pedido de destaque nesse julgamento, feito em setembro de 2023, e solicitado ao presidente da corte, ministro Edson Fachin, a convocação de uma sessão extraordinária do Plenário virtual para apresentar seu voto. Barroso se aposentará neste sábado (18/10).

O presidente do STF ressaltou que a matéria “recomenda debate em sessão presencial, com sustentações orais no Plenário físico e a respectiva publicidade e transparência”. Porém, diante da aposentadoria de Barroso neste sábado, a única possibilidade de ele votar no caso seria por meio da convocação do Plenário virtual extraordinário, conforme ressaltou Fachin.

“Não se me afigura legítimo, monocraticamente, obstar a faculdade de voto de Sua Excelência. A regra do Regimento Interno do STF não afasta a razoável interpretação nesse sentido dada pelo e. Ministro solicitante, à míngua de tempo factível para haurir interpretação colegiada.”

Em entrevista concedida à revista eletrônica Consultor Jurídico em 8 de outubro, véspera do anúncio de sua aposentadoria, Barroso disse que, embora não tenha pautado o caso devido à tensão do Supremo com o Congresso e a sociedade pelos julgamentos da trama golpista, esse é um dos casos mais urgentes em tramitação na corte.

“Eu continuo pensando que é preciso esclarecer à sociedade que ser contra o aborto, não praticar o aborto e pregar contra o aborto são coisas totalmente diferentes de prender a mulher que passa por esse infortúnio. É um debate que precisamos continuar a fazer, porque a descriminalização se impõe como uma medida de justiça para as mulheres pobres, que não podem utilizar a rede pública de saúde para isso. Porque quem tem recursos pode fazer em qualquer país vizinho onde isso é possível, ou mesmo em clínicas que todo mundo sabe que existem por aí.”

No início do julgamento, a relatora da ação, Rosa Weber (hoje aposentada), votou a favor da procedência do pedido formulado na ação.

Contexto
Na ação, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Instituto de Bioética Anis defendem a inconstitucionalidade dos dispositivos do Código Penal que tratam a opção pelo aborto como crime.

O artigo 124 prevê pena de prisão, de um a três anos, para quem “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. Já o artigo 126 pune quem “provocar aborto com o consentimento da gestante” com um a quatro anos de prisão.

Pela legislação, o aborto só não é crime em caso de estupro ou quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Além disso, a jurisprudência do STF permite o aborto nos casos de fetos anencéfalos.

Dignidade da mulher
Em seu voto, Barroso apontou que ninguém é a favor do aborto em si. A questão é se mulheres devem ser presas pela prática.

“Vale dizer: se o Estado deve ter o poder de mandar a polícia, o Ministério Público ou o juiz obrigar uma mulher a ter o filho que ela não quer ou não pode ter, por motivos que só ela deve decidir. E, se ela não concordar, mandá-la para o sistema prisional.”

Segundo o ministro, a interrupção da gestação deve ser tratada como uma questão de saúde pública, não de Direito Penal. Ele mencionou que pesquisas endossadas pela Organização Mundial da Saúde deixam claro que a criminalização não diminui o número de abortos, apenas impede que ele seja feito de forma segura.

“A criminalização penaliza, sobretudo, as meninas e mulheres pobres, que não podem recorrer ao sistema público de saúde para obter informações, medicação ou procedimentos adequados. As pessoas com melhores condições financeiras podem atravessar a fronteira com o Uruguai, Colômbia, ir para a Europa ou valer-se de outros meios aos quais as classes média e alta têm acesso”, ressaltou Barroso, apontando que nenhum país democrático e desenvolvido do mundo proíbe o aborto nas primeiras semanas de gestação.

De acordo com o ministro, “as mulheres são seres livres e iguais, dotadas de autonomia, com autodeterminação para fazerem suas escolhas existenciais”. “Em suma: têm o direito fundamental à sua liberdade sexual e reprodutiva. Direitos fundamentais não podem depender da vontade das maiorias políticas. Ninguém duvide: se os homens engravidassem, aborto já não seria tratado como crime há muito tempo.”

É legítimo discordar do aborto, não o praticar e pregar contra a sua prática, disse Barroso. Porém, não se deve encarcerar mulheres que se submetam ao procedimento. “É perfeitamente possível ser simultaneamente contra o aborto e contra a criminalização.”

“Em suma: numa sociedade aberta e democrática, alicerçada sobre a ideia de liberdade individual, não é incomum que ocorram desacordos morais razoáveis. Vale dizer: pessoas esclarecidas e bem-intencionadas têm posições diametralmente opostas. Nesses casos, o papel do Estado não é o de escolher um lado e excluir o outro, mas assegurar que cada um possa viver a sua própria convicção”, afirmou Barroso.

Proteção ao aborto legal
Em outras duas ações (ADPFs 989 e 1.207), Barroso concedeu liminar nesta sexta para permitir que enfermeiros conduzam o procedimento de aborto legal. O ministro reconheceu a proteção insuficiente do direito fundamental ao aborto legal.

Barroso determinou a adoção imediata das seguintes medidas:

1) A ampliação da rede de atendimento, por meio da extensão da incidência do artigo 128, caput, do Código Penal, a enfermeiros e técnicos de enfermagem que prestem auxílio à interrupção da gestação nas hipóteses em que ela é legalmente legítima. Essa atuação deve ser compatível com o seu nível de formação profissional, notadamente nos casos de aborto medicamentoso na fase inicial da gestação;

2) A suspensão de procedimentos administrativos e penais, assim como de processos e de decisões judiciais que tenham adotado interpretação do artigo 128 do Código Penal incompatível com o entendimento firmado no item (i) acima;

3) A abstenção, por parte de órgãos públicos de saúde, em criar óbices não previstos em lei para a realização do aborto lícito (i.e. nos casos do art. 128 do Código Penal e da ADPF 54), em especial (a) a restrição da idade gestacional em que ele pode ser realizado (cf. ADPF 1141, rel. Min. Alexandre de Moraes) e (b) a exigência de registro de ocorrência policial para o atendimento de saúde.

O ministro fixou a seguinte tese de julgamento:

Em razão do déficit assistencial que torna insuficiente a proteção de mulheres e, sobretudo, de meninas vítimas de estupro, fica facultado a profissionais de enfermagem prestar auxílio ao procedimento necessário à interrupção da gestação, nos casos em que ela seja lícita (Código Penal, artigo 128, e ADPF 54).

Vida do feto e da mulher
Relatora do caso, Rosa Weber afirmou em seu voto que não há direito fundamental à vida do embrião ou feto. Segundo ela, o constitucionalismo brasileiro e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos não adotam a tese do direito à vida desde o momento da concepção.

A Comissão Europeia de Direitos Humanos também já definiu que tal conceito não leva em consideração o nascituro, mas apenas as pessoas nascidas. “Interpretação em sentido contrário seria atribuir à vida não nascida proteção jurídica absoluta, em face da mulher gestante”, apontou Rosa.

De acordo com ela, a fórmula atualmente usada no Brasil “se mostra excessiva ao não considerar a igual proteção dos direitos fundamentais das mulheres, dando prevalência absoluta à tutela da vida em potencial”.

A magistrada ainda argumentou que a maternidade é uma escolha, e não uma “obrigação coercitiva”. Para ela, impor a continuidade da gravidez em qualquer circunstância é uma forma de “violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas”.

Saúde pública
Rosa explicou que os direitos sexuais e reprodutivos da mulher se baseiam em um conceito amplo de saúde, no qual estão incluídos o controle e a redução da mortalidade materna e de suas causas.

O Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) autoriza os países a adotar medidas para regular a interrupção voluntária da gravidez, mas não permite que tais medidas violem os direitos das mulheres. As restrições não podem, por exemplo, colocar em risco suas vidas, sujeitá-las a dor e sofrimento ou interferir na sua vida privada.

Ou seja, os Estados precisam “proporcionar um acesso seguro, legal e eficaz ao aborto sempre que esteja em risco a vida e saúde da mulher”, para que as gestantes não tenham de fazer abortos inseguros. O Comitê expressamente diz que os países não devem aplicar sanções penais às mulheres que recorrem ao aborto ou aos médicos que lhes prestam assistência.

A ministra ainda apontou manifestações de diversas entidades — como o Ministério da Saúde, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Academia Nacional de Medicina (ANM) — que classificam o aborto como um problema de saúde pública das mulheres. O aborto inseguro é uma das quatro causas diretas da mortalidade materna.

Em audiência pública, a Fiocruz defendeu que desconsiderar o desejo de interrupção da gravidez de forma segura é equivalente a “condenar muitas mulheres a piores condições de saúde, que são desproporcionalmente mais elevadas entre aquelas em baixas condições socioeconômicas”.

Rosa fez um levantamento de casos sobre aborto voluntário levados às Cortes Constitucionais de diversos países. Ela notou uma tendência contemporânea de “colocar, no panorama internacional, o problema da saúde sexual e reprodutiva das mulheres como uma questão de saúde pública e de direitos humanos”.

Proibição ineficaz
Com base em dados sobre a grande quantidade de ações penais envolvendo abortos, a relatora constatou que a prática está “enraizada na sociedade”. Assim, sua criminalização “não atende à função preventiva da pena”.

Segundo ela, a sanção penal pelo aborto “não tem eficácia na prática social”. Na verdade, “a criminalização vulnera os princípios fundamentais do Direito Penal e os direitos das mulheres, enquanto não protege o feto”.

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ADPF 442

 

Fonte: Conjur/ Foto: reprodução

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