Sem lei para regular o novo trabalho, cabe à Justiça ditar as regras

Sem lei para regular o novo trabalho, cabe à Justiça ditar as regras

Andam dizendo por aí que o emprego vai acabar. No Brasil, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal iniciou o ciclo da presidência do ministro Edson Fachin com duas bombas em sua pauta de julgamento, discutindo o alcance das relações de emprego previstas na CLT — um Decreto-Lei de 1943 que permanece central nos dias de hoje. São duas ações que terão um impacto enorme no mundo do trabalho e dos negócios quando forem decididas: uma discute a pejotização, ou se é legal contratar um trabalhador como pessoa jurídica; e outra discute se existe relação de emprego entre um motorista de Uber ou um entregador do iFood e as respectivas plataformas digital. O que se decidir aí dirá como deverão se configurar os vínculos e as formas de trabalho no futuro próximo.

Enquanto a ansiedade envolve esse desfecho supremo, a Justiça do Trabalho está às voltas com fantasmas mais comezinhos: milhões de processos que discutem assuntos ordinários, como indenizações a empregados demitidos sem justa causa. Em 2024, ingressaram na Justiça do Trabalho 4,1 milhões de novos processos. Em 31 de dezembro daquele ano, estavam em tramitação cinco milhões de ações trabalhistas.

Entre 2019 e 2021, parecia que haveria um refresco: a Justiça do Trabalho registrou um recuo de 8,5% no número de novos casos, possivelmente como reação aos efeitos da reforma trabalhista de 2017 (Lei 13.467), bem como da flexibilização emergencial promovida para enfrentar a crise gerada pela pandemia de covid-19. Nos três anos seguintes, porém, a curva do movimento processual inverteu e cresceu 9%. Mesmo com todo o esforço de juízes, desembargadores e ministros (que aumentaram a produtividade em 52%), o estoque de processos deu um salto de 32% no período, apontam dados do CNJ compilados pelo Anuário da Justiça.

 

Uma boa medida do impacto econômico da judicialização trabalhista é o montante de verbas pagas pelas empresas aos reclamantes por força de decisão judicial: em 2024, foram R$ 49 bilhões, R$ 20 bilhões a mais do que em 2020.

 

Entre as questões sobre as quais o Supremo deve se manifestar proximamente, está a competência da Justiça do Trabalho sobre contratos de prestação de serviço entre a empresa tomadora e o prestador do serviço, que também é uma pessoa jurídica, o chamado “pejota”. No dia 6 de outubro, o ministro Gilmar Mendes, relator do caso, conduziu audiência pública para reunir subsídios antes do julgamento. Durante sete horas, 48 especialistas apresentaram posições divergentes sobre a pejotização.

 

página 14 – correção – anuário da justiça do trabalho
Representantes do setor empresarial defenderam que a CLT não contempla todas as formas modernas de trabalho, enquanto vozes ligadas à proteção social enfatizaram os riscos fiscais e previdenciários que a flexibilização das normas da CLT pode acarretar. O ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, fez um alerta: a contratação generalizada de pessoas jurídicas já provocou, entre 2022 e 2025, uma perda superior a R$ 106 bilhões em arrecadação de Previdência e FGTS — comprometendo, segundo ele, o financiamento de políticas públicas em áreas como habitação, saneamento e Previdência.

A tendência hoje é que litígios envolvendo esses contratos sejam decididos pela Justiça comum. Com isso, a Justiça do Trabalho, que com a Reforma do Judiciário de 2004 teve sua competência ampliada para julgar não só relações de emprego, mas também as relações de trabalho, teria sua jurisdição novamente restringida.

Desembargadores e juízes trabalhistas entendem que é hora de tomar uma posição — quase sempre em oposição ao que a Suprema Corte prenuncia. Temem e criticam o possível esvaziamento das competências da Justiça do Trabalho. A presidente do TRT-13/PB, disse que busca articulações com empresários contra a decisão. A liderança do TRT-9/PR, enxerga que a Justiça do Trabalho pode muito bem cuidar do tema, como sempre cuidou. A Justiça do Trabalho é, por expressa previsão constitucional, competente para julgar controvérsias decorrentes das relações de trabalho.

 

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Além disso, defende, basta a alegação fundada em uma relação de trabalho para justificar a competência da Justiça do Trabalho. “Confiamos que o STF, à luz da Constituição, reafirmará, o quanto antes, a competência constitucional da Justiça do Trabalho, contribuindo, assim, para a segurança jurídica e para a preservação da estabilidade institucional do nosso país”, disse Valdir Florindo, presidente do TRT-2/SP.

 

Os números também mostram uma quantidade considerável de ações que levantam questões a respeito da competência da Justiça do Trabalho. Em 2024, foram 564 mil reclamações neste sentido — muitas delas, é verdade, tratando de conflito de competência entre varas, mas uma boa parte questionando a jurisdição da Justiça do Trabalho.

 

Nos dois casos do chamado processo da uberização, que integram o Tema 1.291, o Supremo discute a natureza da relação de trabalho entre plataformas digitais de transporte de pessoas e de mercadorias e os motoristas e entregadores. As ações contestam decisões da Justiça do Trabalho que reconheceram o vínculo empregatício de entregadores e motoristas.

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O caso encontra cada vez mais eco na sociedade: dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, divulgados em outubro pelo IBGE, mostram que o número de pessoas que trabalham por meio de aplicativos cresceu 25% em 2024, na comparação com 2022 – passando de 1,3 milhão de trabalhadores nessa condição para quase 1,7 milhão.

 

A decisão que a Suprema Corte tomar incidirá sobre toda a Justiça do Trabalho. Se não for reconhecido o vínculo, quem julgará os contratos entre plataformas e trabalhadores, é a Justiça comum. Daí as reservas, e mesmo críticas, de presidentes dos TRTs. “Se há pouco mais de uma década o desafio da Justiça do Trabalho era digitalizar processos e eliminar o papel, hoje é compreender juridicamente as novas formas de trabalho trazidas pela tecnologia. Mais do que nunca, a missão da Justiça do Trabalho é buscar o equilíbrio nas relações, observando o direito ao descanso, à saúde e ao convívio social, valores que permanecem no centro da proteção trabalhista”, destacou Ana Paula Pellegrina Lockmann, a presidente do TRT-15/SP-Campinas, ao Anuário da Justiça.

 

Para o ministro Flávio Dino, o Supremo há de encontrar um meio-termo, que garanta direitos básicos a esses trabalhadores. O ministro compara a discussão sobre os plataformizados ao julgamento da responsabilização das plataformas digitais, em que se debateu a garantia da liberdade de expressão sem que isso significasse carta branca para o cometimento de crimes digitais. “Nós vamos buscar uma espécie de liberdade regrada, à semelhança do que fizemos com o Marco Civil da Internet. Isso significa dizer que é possível o trabalho humano sem que ele seja regido pela CLT”, disse, em palestra recente em congresso sobre os rumos do Direito do Trabalho. “Mas não significa proibir a CLT, como se ela fosse a encarnação do livro de satanás na Terra. Tem um standard mínimo [de direitos] que não pode ser rebaixado.”

 

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O então ministro do STF, Luís Roberto Barroso (que se aposentou antes da conclusão do julgamento), deixou claro que a discussão gira em torno do vínculo, e não de direitos e garantias trabalhistas. Sem tirar a razão do ministro, o fato é que, no status legislativo vigente, é o vínculo que garante direitos.

 

As reformas feitas na legislação nos últimos anos sempre tiveram como foco principal a flexibilização da relação de emprego, ainda que à custa de sacrificar direitos adquiridos pelos trabalhadores. Pontos fundamentais que poderiam compensar a flexibilização do vínculo, como a instituição do contrato coletivo de trabalho e o fortalecimento da representação sindical, têm sido deixados de lado. No caso dos sindicatos, quando se tratou deles foi para restringir conquistas, como a extinção da contribuição sindical compulsória.

 

Há um consenso de que a legislação trabalhista brasileira, mesmo depois de infinitos remendos e outras tantas reformas, está velha e ultrapassada, porém — e sempre tem um porém — é o que se tem para hoje. O que diz a CLT, a famigerada Consolidação das Leis do Trabalho inaugurada em 1943 sob a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, sobre trabalho intermediado por plataformas digitais? Originalmente, nada. Em 2011, com a Lei 12.551, foi introduzida na CLT a subordinação por meio telemático, um dos requisitos para que se possa reconhecer o vínculo de emprego. Na Câmara dos Deputados, em regime de nenhuma urgência, tramita o PL 12/2024, proposta do Poder Executivo para regulamentar o trabalho por aplicativo, garantindo direitos trabalhistas e previdenciários, sem criar um vínculo empregatício nos moldes da CLT. Uma reforma ampla da CLT, nem pensar.

 

Não há vácuo: com o vazio legislativo, é o Judiciário que assume a responsabilidade. Com divergências. No conflito de visões, uma parte privilegia o trabalho como mero meio de produção enquanto a outra remonta ao valor social do trabalho. Uma prefere ver o trabalhador como o patrão de si mesmo, livre e solto para empreender o próprio negócio; a outra confia na proteção dos direitos básicos do trabalhador pela lei, pensando que acidentes acontecem e que um dia vai chegar a hora da aposentadoria para todos. A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal alinha-se com a primeira posição. A maioria dos ministros do Tribunal Superior do trabalho, por defender a aplicação da CLT, entra no segundo grupo. Pelo respeito à hierarquia dos precedentes, o desempate faz com que as teses do STF se imponham.

 

E o próprio trabalhador, o que diz? Os dados apontam que ele, por bem ou por mal, tem preferido ficar fora do alcance da CLT: entre 2022 e 2025, 5,5 milhões de trabalhadores trocaram o registro da carteira de trabalho pela inscrição no CNPJ. A transfiguração do empregado em empreendedor tem proporcionado um ganho de renda para ele; uma economia para o patrão equivalente a 70% da folha de salários referente aos encargos trabalhistas que deixa de pagar; e um rombo adicional na arrecadação da Previdência Social.

 

Pesquisa Datafolha confirma o que os números sugerem: 59% dos brasileiros dizem preferir trabalhar por conta própria. Pudera: se é para ganhar mais e deixar de recolher encargos, quem não quer trabalhar por conta própria?

 

Crise de emprego? Muito pelo contrário. É o que diz o IBGE que mês após mês, desde março de 2024, anuncia recordes negativos de desemprego. O que levou o presidente do Banco Central a

 

afirmar que o Brasil vive uma era de pleno emprego. Uma notícia maravilhosa, mesmo para um Banco Central que, de olho nas taxas ínfimas no desemprego, mantém a taxa de juros nas alturas, temeroso de que preços ao consumidor que está empregado e com dinheiro no bolso façam a inflação explodir.

 

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A taxa de desemprego no trimestre encerrado em outubro de 2025 ficou em 5,6%, igual à de setembro e a menor da série histórica iniciada em 2012. O IBGE calcula que há um contingente de 6,1 milhões de desocupados, ante um recorde no time dos ocupados, que chega a 102,4 milhões. O trimestre foi marcado também pelo novo recorde no número de trabalhadores com carteira assinada, 39,2 milhões, enquanto o número de trabalhadores sem vínculo formal se manteve estável em 38,7 milhões.

 

O rendimento médio do trabalhador no trimestre encerrado em setembro ficou em R$ 3.484, estabilizando o recorde do trimestre anterior. A massa de rendimentos, que é o total de renda do conjunto dos trabalhadores, alcançou R$ 354,6 bilhões, aumento de 4% em relação ao último ano. De uma forma ou de outra, o que não falta é trabalho.

 

ANUÁRIO DA JUSTIÇA DO TRABALHO 2025

ISSN: 2238-9954
Número de páginas: 304
Versão impressa: R$ 50, à venda na Livraria ConJur
Versão digital: gratuita, disponível no site anuario.conjur.com.br ou pelo app Anuário da Justiça

Anunciaram no Anuário da Justiça do Trabalho 2025
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Banco do Brasil S.A.
BFBM – Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados
Bradesco S.A.
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Décio Freire Advogados
Febraban – Federação Brasileira de Bancos
Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados
JBS S.A.
Mubarak Advogados
Peixoto & Cury Advogados
Refit
Silva Matos Advogados
Warde Advogados

 

Fonte: Conjur / Foto: reprodução

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