PEC das drogas: o que esperar com a sua aprovação?

PEC das drogas: o que esperar com a sua aprovação?
Tramita no Congresso Nacional, já com aprovação no Senado Federal, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 45/2023) que tem por objetivo prever, como mandado constitucional de criminalização, que a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins, independentemente da quantidade de droga, é crime. A chamada PEC das Drogas.
Para entender a seriedade da PEC proposta, há de se compreender o conceito e a extensão dos efeitos de um mandado constitucional de criminalização.
Com efeito, os mandados constitucionais de criminalização podem ser definidos como obrigações de tutela penal previstas na Constituição, que impõem uma atuação positiva aos agentes políticos para que, por meio de leis, ele criminalize determinadas condutas lesivas e, como consequência, proteja bens jurídicos constitucionalmente previstos. Em outras palavras, os políticos ficam obrigados a agirem no sentido de elaborar determinada norma que proteja o bem jurídico penalmente relevante constante do mandado de criminalização.
Considerando que a Lei de Drogas já prevê, dentre as condutas típica, como crime de tráfico a posse e o porte de entorpecentes ou drogas afins, qual seria o verdadeiro objetivo da Proposta de Emenda Constitucional nº 45/2023?
A PEC, em verdade, com todo respeito, visa tornar sem efeito a decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida no âmbito do RE nº 635659/SP, que, por maioria de votos, julgou inconstitucional o artigo 28 da Lei de Drogas, resultando na descriminalização do porte ou posse de pequena quantidade de drogas.
E como poderiam fazer isso?
Criando mecanismos constitucionais que impeçam que o legislador ordinário – os deputados federais e os senadores – editem leis no sentido de descriminalizar a posse ou o porte de pequenas quantidades de drogas, bem como criar obstáculos ao Poder Judiciário decidir pela descriminalização, como fez o STF no RE nº 635659/SP.
Qual a importância da aprovação dessa PEC 45/2023 para o ordenamento penal brasileiro? Resultará em diminuição do crime de tráfico de entorpecentes e drogas afins? Ou será um instrumento de encarceramento dos etiquetados – pobres, pretos ou pardos?
Não se olvida que o tráfico de drogas é extremamente pernicioso para a sociedade brasileira, além de ser catalizador de violência. No entanto, criar um comando constitucional impositivo, de criminalização do porte e posse de drogas, independentemente da quantidade, e pior, relegando a diferenciação entre traficante e usuário para análise das circunstâncias do caso concreto é um retrocesso atroz.
Sabemos que impera a seletividade em relação aos destinatários da persecução penal em relação ao tráfico de drogas. Não é novidade alguma que os clientes preferenciais das polícias são os pobres negros ou pardos. Sabemos ainda que essas pessoas, quando surpreendidas com pequenas quantidades de drogas serão consideradas traficantes e presas em flagrante. Além disso, infelizmente, na maioria das vezes não terão uma adequada defesa durante a instrução processual e serão condenados e amargarão um tempo nos caóticos e superlotados cárceres brasileiro. Por outro lado, o jovem branco, morador de áreas nobres das cidades, nas raras vezes que são abordados pela polícia, quando surpreendidos na posse de drogas, serão considerados usuários e serão liberados para curtir a noite.
Dessa forma, diante do cenário de evidente seletividade, como pode o Legislativo nacional, que deve primar por atender aos interesses de todos, propor uma norma constitucional que delega a distinção entre traficante e usuário a análise do caso concreto?
Analisando-se os dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), tráfico de drogas representa aproximadamente 30% da população carcerária brasileiro (contando homens e mulheres), sendo que desses 30%, mais de 80% são jovens pobres, pretos ou pardos, que eram primários e não ostentavam maus antecedentes, nem histórico de envolvimento com tráfico na adolescência.
Somando-se a isso, o Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Marcelo Semer, em um trabalho acadêmico de fôlego, examinou mais de 800 sentenças de vários estados e dentre as diversas conclusões destacou mais de 70% dos condenados eram primários e não pertenciam a qualquer facção criminosa. Além disso, tinham sido surpreendidos com pequenas quantidades de drogas e nada indicava para a traficância (não foram encontradas balanças ou petrechos indicativos do tráfico), mesmo assim foram condenados e os Tribunais confirmaram as condenações.
Semer destaca que a figura do microtráfico está intimamente ligada ao preconceito e ao racismo estrutural, uma vez que pobres, pretos e pardos, quando surpreendidos na posse de pequena quantidade de droga, mesmo que as demais circunstâncias não convirjam para a mercancia, são enquadrados como traficantes, em que pese a importante inovação trazida pela Lei nº 11.343/06, que despenalizou a conduta perpetrada pelo usuário de drogas, conforme se extrai do artigo 28, caput e incisos.
Ademais, não foi outra a conclusão que o Supremo Tribunal Federal chegou ao examinar o Recurso Extraordinário (RE) 635.659 RG/SP. A maioria dos Ministros seguiram o relator Gilmar Mendes pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06, mas qual foi o fundamento balizador dessa decisão?
Gilmar Mendes apresentou seu minudente voto no dia 20 de agosto de 2015, enfrentando pontos sensíveis e de suma importância para a parametrização da questão. O ministro pautou sua fundamentação, dentre outros elementos de prova, no estudo na Revista Jurídica, Brasília, v. 11, n. 94, 1-29, jun/set 2009, publicação quadrimestral da Presidência da República, intitulado “Tráfico e Constituição: um estudo sobre a atuação da justiça criminal do Rio de Janeiro e de Brasília no crime de tráfico de drogas”. Segundo a pesquisa trazida no referido trabalho, das 730 sentenças condenatórias pelo crime de tráfico de drogas, analisadas entre 2006 e 2008, na Justiça do Rio de Janeiro e de Brasília, por volta de 80% decorreram de prisões em flagrante, na maioria das vezes realizadas pela polícia em abordagem de suspeitos na rua (82% dos casos), geralmente sozinhos (cerca de 60%) e com pequena quantidade de droga (inferiores a 100g). Quem eram os suspeitos? A pesquisa apontou que 75% dos detidos eram jovens na faixa etária entre 18 e 29 anos, sendo que 57%  das pessoas não tinham nenhum registro em sua folha de antecedentes. Além disso, o estudo aponta que, em apenas 1,8% dos casos, houve menção ao envolvimento do acusado com organizações criminosas.
O ministro Gilmar utilizou, também, para fundamentar sua decisão, a pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. O referido estudo constatou que a média de apreensão foi de 66,5 gramas de droga. O estudo confirma que os alvos preferidos das abordagens policiais são os jovens negros e pobres entre 18 e 29 anos.
Analisando-se a PEC 45/2023, qual seria o bem jurídico lesado com a conduta daquele que porta uma pequena quantidade de drogas? o ministro Gilmar responde a este questionamento, senão vejamos. Ele destaca que o consumo de drogas causa prejuízos físicos e sociais ao consumidor e ressalta que “dar tratamento criminal ao uso de drogas é medida que ofende, de forma desproporcional, o direito à vida privada e à autodeterminação”. Com isso, reconhece a inconstitucionalidade da criminalização da posse da droga para uso pessoal, “por atingir, em grau máximo e desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas várias manifestações, de forma, portanto, claramente desproporcional” (Brasil, STF, 2023).
Portanto, o STF enfrentou a exaustão a diferenciação entre usuário e traficante, mas a PEC, caso aprovada pelo Congresso, devolverá a análise para o caso concreto, tornando lotérico, novamente, o exame da caracterização ou não da traficância, devolvendo, assim, ao mundo jurídico a insegurança que o STF tinha solapado na decisão do RE 635.659/SP. Qual a consequência disso? Prisões em massa de jovens negros ou pardos periféricos, que ingressaram nos caóticos e superlotados cárceres brasileiros como usuários e se sairão como soldados das poderosas facções que comando o tráfico no país. É isso que queremos? É isso que se espera do Congresso Nacional?
*Marcelo Aith é advogado criminalista. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca.

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