REFLEXÕES TRABALHISTAS STF: para onde vamos?

REFLEXÕES TRABALHISTAS STF: para onde vamos?

Não surpreende que o Supremo Tribunal Federal, por decisão do relator ministro Gilmar Mendes (RE com Agravo 1.532.603-Paraná), tenha determinado a suspensão, em todo território nacional, reconhecendo a repercussão geral, das ações que versam sobre a discussão de existência de fraude em contratos de prestação de serviços e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo, dando ensejo ao Tema nº 1.389, nos seguintes termos:

“Competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade”.

Reconhecido o ato de discricionariedade, conforme assinala a decisão, incumbirá ao relator (i) “analisar se é competência da Justiça do Trabalho julgar as causas em que se discute a fraude no contrato civil de prestação de serviços; (ii) licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 324, que reconheceu a validade constitucional de diferentes formas de divisão do trabalho e a liberdade de organização produtiva dos cidadãos; e (iii) a questão referente ao ônus da prova relacionado à alegação de fraude na contratação civil, averiguando se essa responsabilidade recai sobre o autor da reclamação trabalhista ou sobre a empresa contratante”, tudo conforme descrito no ato singular.

Assim fazendo, o ministro presume, segundo afirma, que estaria privilegiando a segurança jurídica e desafogando o STF que, então, poderia se dedicar a “outras questões relevantes para a sociedade” (sic).

Quanto à análise da existência de fraude na contratação, o que se discute é a relação de trabalho e sua manifestação de vontade no ato da contratação, permitindo ao trabalhador se apresentar como autônomo, pessoa jurídica ou pessoa física empregado. Parece-nos óbvio, por força da própria Constituição, artigo 114, que foi dado à Justiça do Trabalho competência exclusiva para enquadramento jurídico, observando, sempre, a apresentação inicial do contrato celebrado. Assim, se o contrato inicial é de prestação dos serviços por meio de pessoa jurídica ou autônomo, deveria, com todo respeito às divergências, prevalecer a forma contratada por força da manifestação da autonomia da vontade. Nessa mesma linha, uma vez contratado o trabalhador, pessoa física, como empregado, não se poderia admitir a mudança de relação até então, de pessoalidade direta para pessoa jurídica, com a preservação dos elementos do vínculo de emprego, fazendo, nesse cenário, incidir a regra do artigo 9º da CLT. Nesse caso, a fraude estaria demonstrada porque altera substancialmente as condições iniciais do contrato de emprego.

 

Sobre a licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços, não há proibição legal e, ao contrário, a Lei nº 13.429 de 2017 autoriza expressamente, sem limites, esse modelo jurídico de contratação. Ademais, o próprio STF, na ADPF 324, confirma a liberdade contratual. Deve prevalecer, na relação jurídica estabelecida, a boa-fé nas relações contratuais e, em caso de oposição por meio de ação judicial, aplica-se o “venire contra factum proprium”. A expressão, outrora utilizada por Mario de la Cueva, de que o contrato de trabalho é um “contrato-realidade” não se aplica mais com a intensidade doutrinária de então, posto que houve avanço significativo nos modelos jurídicos de prestação de serviços.

E, ao final, quanto ao ônus da prova relacionado à alegação de fraude na contratação civil, averiguando se essa responsabilidade recai sobre o autor da reclamação trabalhista ou sobre a empresa contratante, caberá ao juiz do Trabalho, na sua sabedoria e experiência sustentadas na aplicação da lei, decidir segundo os fatos alegados e documentos trazidos aos autos pelas partes.

Oportunidade

 

É desafiador e pretensioso ao STF interferir nessa questão de modo autoritário para estabelecer regras gerais para a atuação do magistrado que goza, por princípio universal, de ampla liberdade na direção do processo. Não pode o STF sufocar a atividade jurisdicional porque, diante de uma lei incompleta ou imprecisa, cabe ao juiz, por meio de uma regra de direito extraída da regra de interpretação, julgar de acordo com suas convicções, fundamentadas de acordo com o artigo 93, IX, da Constituição Federal.

 

De qualquer forma, a decisão do ministro abre uma boa oportunidade para que os ministros do STF entendam, definitivamente, questões de extrema relevância em matéria de relação de trabalho e sobre o tema, como, por exemplo, que terceirização é uma coisa e trabalho por meio de pessoa jurídica, prevista na Lei nº 13.429/2017, é outra coisa; que fraude não está no momento da contratação, mas nos atos praticados durante a execução contratual; que as situações fáticas é que são reveladoras de ofensa a direitos dos trabalhadores.

Vale aqui a observação feita pelo jurista De Page (in De l’interprétation des lois, éditions Swinnen, Bruxelles, 1978, t. II, pp. 22/3), segundo o qual

“Dans le domaine de l’application de la loi, le juge,  Por definipeut-être, en tempérera ou en élargira l’exercice. Il usera d’une certaine souplesse suivant les circonstances. Mais son oeuvre, quelque large ou discrète qu’elle soit, devra demeurer compatible avec les pouvoirs limités de juge qui lui donne la division du travail. Il n’est que juge et non pas législateur. Prisonnier de la décision d’espèce, il lui est impossible de s’en évader. Par définition, il est incapable de créer des règles générales, de légiférer” [1].

A judicialização de conflitos trabalhistas é, talvez, uma das maiores manifestações de liberdade reconhecida entre nós e reproduz a desigualdade social e tratamentos discriminatórios que persistem na atividade produtiva. A Justiça do Trabalho é porta de entrada e a caixa de ressonância de uma resistência que não termina por determinação superior.

O Supremo Tribunal Federal poderá nos levar a uma disputa de competência do Judiciário com prejuízo dos jurisdicionados.

 


[1] Em tradução livre: “No campo da aplicação da lei, o juiz poderá, talvez, moderar ou ampliar sua aplicação. Ele se utilizará de certa leveza de acordo com as circunstâncias. Mas sua atuação, por mais ampla ou discreta que seja, deverá continuar compatível com os poderes limitados de juiz que lhe oferece o trabalho. Ele é apenas um juiz e não um legislador. Prisioneiro da decisão, tem limites intransponíveis. Por definição, o juiz é incapaz de criar regras gerais, de legislar.”

 

é advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas.

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