Em 05/11/2024, a 3ª Turma do STJ [1] (REsp 2.135.500-GO), à unanimidade, negou o direito de execução extrajudicial a uma vendedora de imóvel que, deliberadamente, não registrou a alienação fiduciária por dois anos, buscando fazê-lo apenas após a ação de rescisão contratual pelo comprador.
O caso abordado no STJ foi o seguinte: João e Maria ingressaram com ação de rescisão contratual c/c restituição de valores contra a construtora. Alegação: dificuldade financeira.
Os adquirentes, após dois anos de pagamento, notificaram a alienante sobre a intenção de rescindir o contrato por dificuldades financeiras, mas tiveram o pedido negado.
Após o ajuizamento da ação, a alienante registrou o contrato com cláusula de alienação fiduciária, alegando impossibilidade de rescisão e aplicabilidade da Lei nº 9.514/97.
A sentença rejeitou o pedido de rescisão contratual dos autores e acolheu a reconvenção da ré, condenando os compradores a restituírem os valores pagos pela empresa referentes a ITBI, IPTU, escritura e registro.
O TJ-GO reformou a sentença para julgar procedente o pedido de rescisão contratual. Determinou, ainda, a restituição dos valores pagos pelos autores, em parcela única, com retenção de 10%.
No recurso especial, a recorrente alegou negativa de prestação jurisdicional e sustenta seu direito ao registro tardio, além de pleitear a limitação da devolução de valores a 75% das quantias pagas.
Como decidiu o STJ?
O que significa um contrato de alienação fiduciária?
No voto proferido no REsp 2.135.500-GO, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, restou asseverado que a alienação fiduciária de bem imóvel, disciplinada pela Lei nº 9.514/97 e modificada pela Lei nº 10.931/2004, consiste na transferência da propriedade resolúvel do imóvel ao credor fiduciário como garantia, revertendo ao devedor fiduciante com o pagamento da dívida ou consolidando-se no patrimônio do credor em caso de inadimplemento.
Em outras palavras, a alienação fiduciária de bem imóvel é um instrumento de garantia no qual o devedor fiduciante (João e Maria) transfere ao credor fiduciário (construtora) a propriedade resolúvel do imóvel até a quitação da dívida.
Durante esse período, o devedor (João e Maria) mantém a posse direta do bem e, ao cumprir integralmente suas obrigações, a propriedade plena lhe é automaticamente restituída. Caso ocorra inadimplência e não haja purgação da mora, a propriedade consolida-se no nome do credor (construtora), permitindo-lhe dispor do imóvel para satisfazer o crédito.
Registro do contrato como requisito essencial
A questão é que o registro no cartório de imóveis é requisito essencial para a constituição da propriedade fiduciária e para a execução extrajudicial do imóvel, conforme o artigo 23 da referida lei.
A Lei nº 10.931/2004, ao inserir o artigo 1.368-A no Código Civil, determinou que a disciplina das demais espécies de propriedade fiduciária deve observar suas legislações específicas, aplicando-se o Código Civil apenas de forma subsidiária.
Prevalência da Lei nº 9.514/97 sobre o CDC
A jurisprudência do STJ consolidou a prevalência do regime da Lei nº 9.514/97 sobre o Código de Defesa do Consumidor (CDC) nos contratos devidamente registrados, conforme decidido no Tema 1.095 (REsp 1.891.498/SP e REsp 1.894.504/SP).
Constitucionalidade da execução extrajudicial
O STF, no julgamento do RE nº 860.631 (Tema 982 da Repercussão Geral), confirmou a constitucionalidade da execução extrajudicial prevista na lei, reafirmando sua compatibilidade com garantias processuais constitucionais.
E se não houver o registro do contrato?
A 2ª Seção do STJ, no EREsp 1.866.844/SP, esclareceu que a ausência de registro do contrato no cartório de imóveis não afeta sua validade e eficácia entre as partes, mas impede a realização da execução extrajudicial, pois o registro é indispensável para a constituição da propriedade fiduciária e para dar início ao procedimento extrajudicial de execução em caso de inadimplência, garantindo a formalização da mora do devedor perante o oficial de registro de imóveis, nos termos dos artigos 26 e 27 da Lei nº 9.514/97.
A construtora teria direito ao registro tardio?
A 3ª Turma, à unanimidade, entendeu que não.
Ausência deliberada do registro como atração à boa-fé objetiva e à supressio
Para o colegiado, a ausência deliberada do registro do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel, adotada como estratégia comercial por alienantes para reduzir custos na operação, tem implicações jurídicas relevantes, especialmente à luz dos princípios da boa-fé objetiva e da supressio.
Lembrou o órgão fracionário que a Lei nº 9.514/97, em seu artigo 23, estabelece que a propriedade fiduciária só se constitui com o registro do contrato no Cartório de Registro de Imóveis, sendo este um requisito essencial para a execução extrajudicial prevista nos artigos 26 e 27.
Consequências da inércia prolongada
Logo, a inércia prolongada do credor em efetuar esse registro transforma a relação contratual em uma mera relação obrigacional pessoal, sem a constituição da garantia real. No entanto, alguns credores, ao perceberem a intenção do adquirente de rescindir o contrato, realizam o registro tardio para afastar a incidência do CDC e do Código Civil, evitando assim a aplicação da Súmula 543 do STJ, que assegura ao adquirente o direito à rescisão e restituição dos valores pagos.
No entender a ministra Nancy, esse comportamento viola o princípio da boa-fé objetiva, que impõe um padrão ético de lealdade e confiança entre as partes (artigo 422 do CC), sendo vedada a prática de abuso de direito (artigo 187 do CC).
A supressio, como corolário da boa-fé objetiva, por sua vez, impediria que uma parte, após longo período de inércia, exercesse um direito que gerasse desequilíbrio contratual, criando a legítima expectativa de renúncia desse direito pelo não exercício.
Lembrou-se precedentes recentes segundo os quais sem o registro do contrato, não se pode exigir que o adquirente se submeta ao procedimento de execução extrajudicial para receber eventuais diferenças do vendedor (AgInt no AREsp nº 2.488.690/GO, DJe 15/5/2024).
Dessa forma, concluiu a 3ª Turma que a opção deliberada do alienante pelo registro tardio, após o ajuizamento da ação de rescisão, inviabilizaria a incidência da execução extrajudicial da Lei nº 9.514/97, devendo a controvérsia ser solucionada pelo CC, CDC e Súmula 543 do STJ, garantindo a proteção do adquirente contra condutas “oportunistas que desvirtuam a exigência legal do registro”.
Breves reflexões sobre o julgado
O julgado merece reflexão um pouco mais aprofundada.
É preciso lembrar que inexiste prazo legal para o registro do contrato na Lei nº 9.514/97, de modo que não há ilicitude no fato de a construtora retardar voluntariamente esse ato. Banda outra, não se pode presumir que a construtora deixou de efetuar o registro apenas para economizar custos, sobretudo se a legislação não fixa qualquer limite temporal para tanto.
Na verdade, punir o credor por não registrar de imediato, afastando o regime da Lei nº 9.514/97 em favor do Código de Defesa do Consumidor e da Súmula 543 do STJ, extrapola o texto legal e ignora a livre pactuação permitida pelas normas de direito imobiliário.
Fica o questionamento: é possível esvaziar por completo um instrumento de garantia contratual impondo deveres e ônus que não foram previstos expressamente pelo legislador? Isso não geraria insegurança jurídica e afetaria a atratividade dos financiamentos imobiliários?
Essas e outras questões precisam ser refletidas e discutidas com mais profundidade pelos operadores do direito.
[1] A 3ª TURMA, por unanimidade, conheceu do recurso especial e lhe negou provimento, nos termos do voto da sra. ministra relatora. Os srs. ministros Humberto Martins, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a sra. ministra relatora. Presidiu o julgamento o sr. ministro Humberto Martins. Ausente, justificadamente, o sr. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.

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