Lei Maria da Penha protege homens em relacionamentos homoafetivos

Lei Maria da Penha protege homens em relacionamentos homoafetivos

Quando falamos de direitos fundamentais, precisamos deixar claro uma coisa: eles não foram feitos para estar ao alcance apenas de algumas pessoas. A Constituição de 1988 é bem categórica nisso. Promete segurança, igualdade e dignidade para todos. Mas, durante muito tempo, essa promessa constitucional ficou apenas no papel quando o assunto era violência doméstica vivida por homens em relacionamentos homoafetivos. E isso é um problema muito sério.

É precisamente nesse contexto que entra em cena uma decisão do Supremo Tribunal Federal que merecia ser muito mais conhecida: o julgamento do Mandado de Injunção 7.452, decidido em fevereiro de 2025. Essa sentença não é apenas mais uma decisão jurídica ou mais uma manifestação do tão falado ativismo judiciário. É um ponto de virada importante na história dos direitos das minorias sexuais e de gênero no Brasil. E faz algo bem simples: reconhece que a Lei Maria da Penha também protege homens quando estão em posição de vulnerabilidade nas relações homoafetivas.

Mas por que isso é importante?

Uma lacuna perigosa na lei
Antes de entendermos a decisão, precisamos entender o problema que ela resolveu. A Lei Maria da Penha foi sancionada em 2006 com um objetivo claro: proteger mulheres contra violência doméstica. Nasceu de um reconhecimento importante: as mulheres sofrem violência justamente porque estão em posição de subordinação histórica, cultural e social. Esse era o diagnóstico. E era absolutamente correto.

Só que aqui vem a questão incômoda: e os homens que vivem situações análogas? Estamos falando de homens gays, bissexuais e trans; homens que, dentro de seus relacionamentos homoafetivos, experimentam a mesma subordinação que motivou a criação da lei.

Por muitos anos, a resposta do sistema de justiça foi um “não”. A jurisprudência majoritária simplesmente rejeitava qualquer tentativa de aplicar a Lei Maria da Penha a esses homens. A razão era tão formal quanto vazia: a lei dizia “mulher”, então só mulheres poderiam ser protegidas. Pronto. Como se a lei tivesse sido esculpida em rocha e não pudesse respirar junto com a realidade.

Enquanto isso, dados reais mostravam o óbvio: homens gays vivem violência doméstica. Muita violência. E não tinham para onde correr. Os delegados diziam não. Os juízes diziam não. Os promotores diziam não. Havia uma lacuna brutal na proteção estatal, e pessoas reais sofriam por causa dela.

O Conselho Nacional de Justiça, em uma pesquisa importante, publicada em 2022, intitulada “Discriminação e Violência contra a População LGBTQIA+”, identificou que 14,7% dos casos de violência contra pessoas LGBTI+ envolviam violência doméstica, em que a pessoa agressora morava com a vítima. Entre essas vítimas, havia 12,5% de homens GBT+. Não é um número pequeno. São histórias reais. São pessoas reais. São vidas sendo destruídas.

A omissão legislativa
É exatamente aí que entra o conceito de omissão legislativa inconstitucional. Parece complicado, mas a ideia é simples: quando a Constituição determina que o Estado tem um dever (neste caso, proteger contra violência doméstica), e o Congresso Nacional simplesmente não faz nada para cumprir esse dever, há um problema constitucional grave.

A atual Constituição, em seu artigo 226, parágrafo 8º, estabelece que o “Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”, não diz nada sobre “mulheres”. As palavras utilizadas dizem respeito à “toda pessoa” que vive em ambiente familiar ou intrafamiliar. Isso é escrito para proteger pessoas, não apenas um segmento específico delas.

Mas o Congresso Nacional ficou completamente inerte. Por quase duas décadas, simplesmente não legislou nada que expandisse a proteção para além das mulheres. Havia projetos de lei tramitando, sim. Podemos citar o PL 2.653/2019, de autoria do deputado federal David Miranda, apresentação em 7 de maio de 2019, tendo como objetivo dispor sobre a proteção de pessoas em situação de violência baseada na orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou características biológicas ou sexuais. Porém, projetos como esse permaneciam tramitando sem nunca chegar a lugar algum. Enquanto isso, pessoas sofriam violência sem qualquer proteção específica.

E aqui está o trago amargo da história: essa inércia não é acidental. É sistemática. Revela uma realidade que precisamos nomear: existe um “menosprezo institucional” pelo sofrimento da população LGBTI+. É isso mesmo. Não é uma falta de prioridade. É um descaso estruturado que diz, sem palavras, que essas vidas importam menos.

O STF como guardião da Constituição

Quando a Associação Brasileira de Famílias HomoTransAfetivas (Abrafh) e a Aliança Nacional LGBTI levaram o caso ao Supremo Tribunal Federal, algo importante aconteceu. A corte não se escondeu atrás de formalidades. Não disse que era assunto só para o Legislativo. Não cruzou os braços.

Ao contrário, reconheceu, de forma unânime, que havia uma omissão legislativa inconstitucional. E fez algo bem mais audacioso: interpretou a Lei Maria da Penha de forma a estendê-la aos casais homoafetivos de homens e às mulheres travestis ou transexuais.

Mas isso não foi um capricho de juiz. Foi baseado em raciocínio jurídico sólido. O relator, ministro Alexandre de Moraes, explicou bem claramente: se a Lei Maria da Penha foi feita para proteger quem está em posição de subordinação dentro de uma relação, e se homens GBTI+ estão precisamente nessa posição de subordinação cultural e social (por causa da homotransfobia estrutural que enfrentam), então a lei deve se aplicar a eles.

É lógica simples. Mas precisava ser dita. E PRECISAVA ser dita pelo tribunal mais importante do país.

A decisão do STF partiu de um princípio que é absolutamente fundamental: a igualdade real não significa tratar igualmente quem está em posições desiguais. Significa, isto sim, reconhecer essas diferenças e proteger quem realmente precisa de proteção. É por isso que existem normas especiais. Porque algumas pessoas enfrentam coisas que outras não enfrentam.

Quando ‘não proteger’ é inconstitucional
Aqui entra um conceito que costuma ficar guardado nos livros de Direito Constitucional, mas que é absolutamente prático quando aplicado: o Princípio da Proporcionalidade, especificamente na sua dimensão de “proibição de proteção deficiente”.

Em termos simples, esse princípio diz o seguinte: quando a Constituição protege um direito fundamental (neste caso, o direito à segurança), o Estado não pode oferecer uma proteção tão fraca, tão insuficiente, que deixe a pessoa completamente vulnerável. É uma proibição de insuficiência.

E era exatamente isso que estava acontecendo com homens em relacionamentos homoafetivos. Sim, tecnicamente havia normas penais gerais que podiam ser aplicadas. Mas na prática? Essas normas não ofereciam as mesmas medidas protetivas específicas que a Lei Maria da Penha oferecia. Não havia os mesmos canais de denúncia. Não havia a mesma estrutura de atendimento especializado. Não havia as mesmas medidas protetivas de urgência. Isso é proteção deficiente. E proteção deficiente é inconstitucional.

A vida real por trás da decisão
Mas é preciso sair um pouco dos conceitos jurídicos para entender o que essa decisão realmente significa para pessoas reais. Significa que agora, quando um homem GLBT+ é agredido, intimidado, controlado psicologicamente pelo seu companheiro, ele pode ir a uma delegacia especializada e ter seu caso tratado como violência doméstica. Tem acesso às medidas protetivas de urgência. Tem proteção estatal real.

Isso parece óbvio? Talvez devesse ser óbvio. Mas durante anos, não era. Durante anos, essas pessoas eram simplesmente viradas para trás. E não estamos falando de coisas abstratas. Estamos falando de violência física, psicológica, sexual, patrimonial, moral. Estamos falando de pessoas que são espancadas por seus companheiros. Que são ameaçadas. Que são controladas e manipuladas. E que agora têm, finalmente, um lugar para correr.

A questão do STF versus Legislativo
Uma crítica que sempre aparece em casos assim é: “Mas o STF não está invadindo o espaço do Legislativo?” É uma crítica compreensível. E tem um fundo de verdade. A regra geral realmente é que cabe ao Legislativo criar as leis.

Mas aqui temos um cenário especial. Temos uma Constituição que ordena proteção. Temos um Legislativo que se recusa a agir. E temos pessoas sofrendo. Quando essa combinação aparece, a Constituição pede, de fato, que o Judiciário intervenha. Não para legislar. Mas para garantir que os direitos constitucionais não permaneçam letra morta.

Além disso, a decisão do STF não tirou a responsabilidade do Legislativo. Reconheceu expressamente que há uma “mora legislativa” e continuou pedindo que o Congresso aprove uma lei específica sobre o tema. A decisão é provisória. A solução permanente tem que vir de quem faz lei. Mas enquanto isso não acontece, a vida das pessoas não pode estar em suspenso. É uma solução que honra tanto o princípio da separação de poderes quanto o princípio da proteção aos direitos fundamentais.

Igualdade para quem realmente precisa
Um princípio jurídico muito importante que costuma ficar invisível na prática é esse: igualdade não significa tratar todo mundo da mesma forma. Igualdade significa reconhecer as diferenças reais e oferecer proteção proporcional a essas diferenças.

Um homem em um relacionamento heteroafetivo não está em posição de subordinação por razões de gênero ou de orientação sexual. Um homem em um relacionamento homoafetivo, especialmente em uma sociedade estruturada por homotransfobia, está. É uma situação completamente diferente.

Por isso a Lei Maria da Penha pode ser aplicada a um e não ao outro, e isso ainda assim estar respeitando o princípio da igualdade. Porque a igualdade real é dar para cada um o que cada uma precisa, não dar a mesma coisa para todo mundo.

Essa decisão do Supremo Tribunal Federal é uma mensagem: direitos fundamentais não são coisas que a gente pode deixar para depois. Não são coisas que podem depender de quantos votos tem a população protegida. Não podem estar reféns da inércia legislativa.

É uma vitória da vida sobre a burocracia. É um reconhecimento de que direitos fundamentais não são jogos de palavras. São proteções reais para pessoas reais. São vidas sendo protegidas. E isso, no fim das contas, é o que o direito deveria fazer: proteger quem precisa de proteção.

Victor Gomes Soares de Barros – é membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e do instituto Rede de Estudos Empíricos em Direito, diretor de Pesquisa e Produção Científica da Associação Pernambucana de Jovens Juristas, diretor de Pesquisa e vice-diretor de Educação do Laboratório Pernambucano de Ciências Criminais. coordenador-geral do Núcleo de Prática Científica e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE).

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