Inconstitucionalidade da anistia para crimes contra o Estado de Direito

Inconstitucionalidade da anistia para crimes contra o Estado de Direito

Os resquícios dos atos extremistas de 8 de janeiro de 2023 continuam a pairar sobre a democracia brasileira, como uma sombra que testa a resiliência das instituições. Nesse cenário, propostas de anistia para os condenados por crimes contra o Estado democrático de Direito emergem no debate parlamentar, apresentadas como gestos de pacificação nacional. No entanto, um exame rigoroso da Constituição de 1988 revela que tais iniciativas não apenas contrariam a jurisprudência consolidada pelo Supremo Tribunal Federal, mas colidem diretamente com o núcleo imutável do texto constitucional, configurando uma violação aos princípios que sustentam o regime republicano brasileiro.

O que se coloca em questão não é mera divergência política, mas a integridade do pacto constitucional forjado na redemocratização. Permitir o perdão a atos que visam subverter a ordem democrática equivaleria a inserir no coração da Carta Magna um mecanismo de autodestruição. Este artigo demonstra, com base em disposições expressas da Constituição, em sua interpretação sistemática e em precedentes judiciais vinculantes, por que a anistia para esses crimes é não apenas ilógica, mas juridicamente inviável. Para tanto, enfatiza-se o alinhamento com os princípios constitucionais de hierarquia de valores, proporcionalidade e coerência normativa, e vedação ao esvaziamento da norma, reforçados por exemplos concretos de crimes vedados à anistia, mas sujeitos à prescrição, destacando a gravidade superior dos delitos imprescritíveis.

 

Proteção constitucional aos crimes contra a democracia

 

O artigo 5º, inciso XLIV, da Constituição estabelece uma categoria singular de delitos: as ações de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático de Direito são inafiançáveis e imprescritíveis. Essa dupla vedação — à fiança, que impede a liberdade provisória, e à prescrição, que mantém a punibilidade perpétua — reflete a intenção dos constituintes de blindar o regime democrático contra investidas autoritárias, ecoando as lições amargas do período ditatorial.

 

Diferentemente do inciso XLIII, que proíbe anistia e graça para crimes hediondos, tortura, tráfico de entorpecentes e terrorismo, mas permite a prescrição, o XLIV impõe um tratamento mais rigoroso. A ausência de menção explícita à anistia no XLIV não autoriza sua concessão; ao contrário, a interpretação teleológica e sistemática, adotada pelo STF, conclui pela impossibilidade absoluta. Como pontuou o ministro Alexandre de Moraes em decisões recentes, seria contraditório que a Constituição instituísse proteções eternas à democracia e, simultaneamente, permitisse sua neutralização por atos políticos efêmeros. Essa vedação implícita decorre da gravidade superior desses crimes, que não vitimam indivíduos isolados, mas ameaçam a estrutura coletiva da sociedade livre.

Cláusulas pétreas como barreiras absolutas

 

O artigo 60, §4º, da Constituição erige limites materiais ao poder de emenda, vedando propostas tendentes a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Embora o Estado Democrático de Direito não figure explicitamente nesse rol, ele permeia esses elementos como substrato essencial, conferindo-lhes coerência e efetividade.

 

Uma lei de anistia para crimes contra a democracia infringiria essas cláusulas de forma frontal. Os eventos de 8 de janeiro não se limitaram a danos materiais às sedes dos Três Poderes; representaram uma tentativa de desmantelar a arquitetura institucional, questionando a legitimidade do Congresso eleito, do Judiciário independente e do Executivo legitimado pelas urnas. Perdoar tais atos relativizaria a intangibilidade da separação dos Poderes e da federação, precisamente o que o §4º proíbe. Da mesma forma, ao validar retroativamente ataques ao sufrágio universal, esvaziaria a proteção ao voto como mecanismo soberano de legitimação democrática, abrindo precedente perigoso para regimes de exceção.

O STF, na ADI 5.525, firmou que as cláusulas pétreas não se restringem a alterações diretas, mas abrangem qualquer norma que, por vias oblíquas, comprometa o cerne constitucional. Uma anistia enquadrar-se-ia nessa inconstitucionalidade reflexa, pois, sob pretexto de reconciliação, minaria os consensos fundamentais de 1988.

 

Princípios estruturantes que vedam a anistia

 

Três princípios constitucionais convergem para tornar a anistia juridicamente impraticável, destacando a gradação de gravidade que o constituinte estabeleceu entre delitos comuns e aqueles que atentam contra o cerne da democracia. Essa análise revela não apenas uma hierarquia, mas uma lógica irrefutável: crimes de menor envergadura coletiva, ainda que vedados à anistia, admitem prescrição; já os imprescritíveis merecem proteção absoluta, tornando o perdão político uma contradição inadmissível. Esses princípios — hierarquia de valores, proporcionalidade e coerência normativa, e vedação ao esvaziamento da norma — são aplicados de forma recorrente pelo STF em casos de colisão de direitos, garantindo a unidade e a efetividade do ordenamento jurídico.

Hierarquia de valores constitucionais

 

A Constituição estabelece uma escala implícita de proteção, na qual os crimes contra a democracia ocupam o ápice de gravidade. Enquanto o inciso XLIII veda anistia a delitos prescritíveis — como o estupro (considerado hediondo pela Lei 8.072/1990), que, apesar de sua abjeção, pode prescrever após 20 anos se não houver agravantes; o tráfico de entorpecentes em menor escala, que prescreve em até 12 anos dependendo da pena; o latrocínio (roubo seguido de morte), prescritível em até 30 anos dobrados pela lei de hediondos; ou a extorsão mediante sequestro, com prazos similares de 16 a 24 anos — o XLIV impõe imprescritibilidade, sinalizando que ataques ao regime democrático merecem sanção perpétua.

 

 

Imagine-se o absurdo: um estupro ou latrocínio, crimes que violam a dignidade individual e são expressamente excluídos da anistia, ainda assim extinguem-se pela prescrição se o Estado demorar a agir; já uma tentativa de golpe, que ameaça a dignidade coletiva de toda a sociedade, poderia ser perdoada por decisão política, apesar de sua imprescritibilidade. Como observou o ministro Luís Roberto Barroso na ADPF 964, inverter essa lógica — permitindo perdão a crimes que ameaçam a coletividade inteira, mas vedando-o a ofensas individuais ou setoriais — configuraria uma aberração axiológica. Essa distinção reforça que, se crimes “menores” em impacto sistêmico, como o estupro, latrocínio ou terrorismo isolado, não admitem anistia mas prescrevem, os contra a democracia, por sua natureza imprescritível, demandam vedação ainda mais rigorosa ao perdão, alinhando-se à hierarquia de valores que prioriza a preservação do Estado Democrático.

 

Proporcionalidade e coerência normativa

 

A resposta estatal deve ser congruente com a severidade do delito, evitando paradoxos que desequilibrem o sistema, conforme o princípio da proporcionalidade aplicado pelo STF para resolver colisões normativas. Admitir anistia para crimes imprescritíveis geraria um curto-circuito lógico no ordenamento jurídico: um autor de tortura (inciso XLIII), delito vedado à anistia mas prescritível em até 20 anos, escaparia da punição pelo decurso do tempo, mas nunca poderia ser anistiado; já o responsável por uma insurreição contra o Estado democrático (inciso XLIV) poderia ser processado indefinidamente devido à imprescritibilidade, mas seria elegível para perdão político a qualquer momento.

 

Considere, por exemplo, um crime de racismo (equiparado a hediondo pela Lei 12.033/2009), que não admite anistia mas prescreve em prazos ordinários do Código Penal — tipicamente 8 a 12 anos, dependendo da pena aplicada; ou o homicídio qualificado, vedado à anistia mas prescritível em até 30 anos. Esses delitos, embora graves por ferir a igualdade individual ou a vida, afetam vítimas específicas e permitem que o tempo cure a punibilidade estatal; contrastando, um atentado à democracia afeta a todos e, por ser imprescritível, não pode logicamente ser mais leniente quanto à anistia. Tal interpretação tornaria a imprescritibilidade inócua, violando o princípio da unidade do ordenamento, como reiterado pelo STF em recursos extraordinários. A proporcionalidade exige que, se crimes de menor amplitude coletiva e prescritíveis já são blindados contra o perdão, os imprescritíveis — de maior gravidade — sejam ainda mais protegidos, sob pena de incoerência que fragilize todo o sistema.

Vedação ao esvaziamento da norma

 

A hermenêutica constitucional repele leituras que tornem ineficazes dispositivos da Lei Maior, princípio que o STF invoca para preservar a efetividade normativa. A imprescritibilidade visa salvaguardar a democracia de forma perene; permitir anistia a subordinaria a maiorias transitórias, reduzindo-a a retórica vazia.

 

Tome-se como exemplo o homicídio qualificado (hediondo, inciso XLIII), vedado à anistia mas prescritível em até 30 anos; ou a extorsão mediante sequestro, com prazos de 16 a 24 anos: essas normas protegem a vida ou a liberdade individual, mas admitem que o tempo extinga a ação penal se o Estado for inerte; admitir anistia para crimes contra a democracia, imprescritíveis, equivaleria a esvaziar sua proteção eterna, permitindo que a conveniência política faça o que o tempo não pode. Se um homicídio hediondo ou sequestro, de impacto localizado, não pode ser perdoado mas prescreve, como justificar o perdão a um delito que ameaça a vida em sociedade como um todo, sem prescrição? Essa abordagem inverteria a teleologia constitucional, tornando o inciso XLIV dependente de vontades políticas efêmeras, em violação ao princípio de efetividade das normas, como aplicado pelo STF na ADI 5.525.

 

Jurisprudência como guardiã da ordem constitucional

 

Os precedentes do STF iluminam essa impossibilidade. No emblemático caso Daniel Silveira, a ADPF 964 anulou graça presidencial concedida por incitação a atos antidemocráticos, declarando que crimes contra a democracia não admitem clemência, sob pena de o sistema autorizar sua própria sabotagem. Esse julgado, unânime, estabelece precedente vinculante, estendendo-se a anistias legislativas por analogia de efeitos.

Nos inquéritos 4.921 e 4.922, relativos a 8 de janeiro, o STF classificou as invasões como crimes do inciso XLIV, aplicando rigor inabalável. Ministros de variadas correntes têm sinalizado que qualquer anistia seria nula por incompatibilidade com as cláusulas pétreas.

Paralelos históricos reforçam o argumento. A Lei de Anistia de 1979 (6.683) foi instrumento de transição em um regime moribundo, validado pelo STF em contexto excepcional. Hoje, em uma ordem democrática consolidada, repetir tal medida seria retrocesso inadmissível, como adverte Fábio Konder Comparato: não se negocia com quem atenta contra o DNA da República.

Vigilância como dever constitucional

 

Propostas de anistia para crimes contra o Estado democrático de Direito transcendem o debate político; configuram assalto aos pilares da Constituição. Elas não promovem reconciliação, mas normalizam o inaceitável, abrindo precedentes para futuras instabilidades. O STF, como guardião da Carta Magna, já demonstrou que não hesitará em declarar nulas tais iniciativas, preservando os consensos de 1988.

Em tempos de polarização, a defesa intransigente desses valores não é opção, mas imperativo. A democracia brasileira, forjada na superação do autoritarismo, possui os mecanismos jurídicos para resistir. Cabe às instituições e à sociedade zelar por eles, recordando que o preço da liberdade é a vigilância perpétua sobre os fundamentos constitucionais.

 

 

Por: Sebá Abreu – é pós-graduado em Gestão Financeira Avançada e bacharel em Ciências Econômicas.

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