DO PRIVILÉGIO DE SER CONDENADO POR UM TRIBUNAL POLÍTICO DE EXCEÇÃO: A “INVOLUÇÃO” DA PRERROGATIVA DE FUNÇÃO EM FACE DA CESSAÇÃO DO EXERCÍCIO DO CARGO

DO PRIVILÉGIO DE SER CONDENADO POR UM TRIBUNAL POLÍTICO DE EXCEÇÃO: A “INVOLUÇÃO” DA PRERROGATIVA DE FUNÇÃO EM FACE DA CESSAÇÃO DO EXERCÍCIO DO CARGO

“Qué difícil es cuando todo baja no bajar también”! Antonio Machado 1 Tornarei teus juízes semelhantes aos de
outrora, e teus conselheiros como os de antigamente. Então te chamarão cidade da justiça, cidade fiel. Sião será remido pelo direito, e seus convertidos, pela justiça.

Isaías, 1,16.

Ao longo de muitos anos o Supremo Tribunal Federal vinha estabelecendo os contornos a respeito da questão da competência especial por prerrogativa de função e da
cessação definitiva do exercício funcional. Primava pela técnica ao determinar que o foro especial cessasse com o fim do exercício do cargo, bem como que após o encerramento da instrução no juízo especial, não haveria mais alteração. Era então preservada a prerrogativa de foro somente durante o exercício do cargo, pois é evidente que essa competência especial não se dá em razão da pessoa, mas em razão do cargo.

 

Por outro lado, era necessário estabelecer um termo para que a competência se firmasse, ficando determinado que após o encerramento da instrução, mesmo com a cessação do exercício do cargo, a competência especial sofreria prorrogação. 1 MACHADO, Antonio. Que difícil és… Disponível em
https://es.wikisource.org/wiki/%C2%A1Qu%C3%A9_dif%C3%ADcil_es… , acesso em 22.03.2025.

 

Torna-se oportuno expor, em breves linhas gerais, como se dá a evolução (ou agora involução) do tema ao longo dos anos: A questão se refere à seguinte situação: um indivíduo, detentor de cargo que tem competência por prerrogativa de função (por exemplo, um Presidente da República), comete, em tese, um crime durante o exercício do mandato. Cessado o mandato continua valendo o foro especial ou não?

 

A questão é polêmica e tem sofrido alterações legais e de entendimento jurisprudencial ao longo do tempo. Senão vejamos: a)Súmula 394, STF (datada de 1964) – O foro especial por prerrogativa de função persiste mesmo após o encerramento do mandato, desde que o crime tenha sido cometido durante o exercício funcional. Isso para qualquer crime, tenha ele ligação com o exercício da função ou não (ex. tanto faz um desvio de verbas ou um furto em supermercado). Fundamento: a garantia funcional seria inócua se se alterasse com o tempo.

 

b)Data de 25.08.1999 – O STF cancela a Súmula 394. O foro por prerrogativa de função cessa com a cessação da atividade funcional. Isso para qualquer crime, tenha
ele ligação com o exercício da função ou não (ex. tanto faz um desvio de verbas ou um furto em supermercado). Fundamento: o foro especial deve ser restritivamente
interpretado com vistas ao Princípio da Igualdade.

 

c)Data de 26.12.2002 – Lei 10.628/02 que dá nova redação ao artigo 84 do CPP, acrescentando-lhe dois parágrafos. “A competência por prerrogativa de função relativa aos atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública” (art. 84, § 1 º ,
CPP). Surge então uma conformação intermediária entre a Súmula 394, STF e o seu cancelamento. Agora, se o crime praticado durante o mandato for relativo ao exercício da função, segue o foro privilegiado mesmo após a cessação do mandato. Mas, se o crime não for relativo ao exercício da função, não prossegue o foro privilegiado (ex. no caso do desvio de verbas, segue o foro privilegiado; já no caso do furto em um supermercado, não prossegue).

 

A Lei 10.628/02 foi ainda mais além: estabeleceu também foro privilegiado para os casos de Improbidade Administrativa (Lei 8429/92) no novo § 2 º , do art. 84, CPP. Esse foro também persistiria ao final do Mandado, pois o § 2 º estendia o alcance do § 1 º a esses casos que, certamente, constituem atos relativos ao exercício da função.

 

d)Data de 15.09.2005 – Plenário do STF (votação por maioria 7X3) declara a inconstitucionalidade dos §§ 1 º e 2 º , do art. 84, CPP. O STF considerou a edição da Lei
10.628/02 uma clara reação de afronta do legislativo ao cancelamento da Súmula 394, STF. Segundo a decisão enfocada, somente por emenda constitucional e não por lei ordinária poder-se-ia criar novos casos de foro por prerrogativa de função.

 

A partir dessa decisão do STF ficou estabelecida a seguinte situação: d.1-Não existe foro por prerrogativa de função para os casos de Improbidade Administrativa;

 

d.2-O foro por prerrogativa de função não se estende mais para os ex – ocupantes de cargos, não importando se o ilícito penal é comum ou relativo ao exercício do cargo e muito menos para os casos de Improbidade Administrativa.

 

e)Ano de 2014 – AP 606 QO STF. A renúncia ao cargo após o fim da instrução criminal não conduz à alteração do foro privilegiado. Trata-se de estabelecer um limite
temporal para a alteração da competência do juízo especial.

 

f)Ano de 2015 – INQ. 3734 STF – Se o réu não é reeleito após a conclusão da instrução criminal, isso não altera o foro por prerrogativa. Mais uma vez se trata de
estabelecer um limite temporal para a alteração da competência do juízo especial. Após a instrução criminal, não há mais mudança possível.

 

g)Ano de 2018 – AP 937 QO STF – Nessa ocasião são estabelecidas as seguintes teses:

 

g.1)O foro por prerrogativa somente é aplicável para crimes praticados durante o exercício do cargo e relacionados a este.

g.2)Mantem-se a orientação de que a competência não muda mais após o fim da instrução.

 

h)Ano de 2025 – HC 232.627 e INQ. 4787 – Em um retorno estranho a 1964, afirma-se que o foro por prerrogativa é mantido mesmo depois do fim do exercício do
cargo ou mandato. É abandonada a chamada “Regra da Atualidade”. Não se exige que a autoridade esteja no exercício do cargo. Passa-se a adotar a “Regra da Contemporaneidade”, ou seja, apenas que o ilícito em apuração tenha sido perpetrado durante o exercício do cargo e/ou em razão dele.

 

Nota-se claramente que durante o correr dos anos o STF fez por defender a competência de acordo com a Constituição, o que é, aliás, sua precípua função. Impediu
a tentativa do legislador ordinário de burlar as regras constitucionais com a Lei 10.628/02. Preservou a boa técnica no que diz respeito às regras de competência especial que, embora denominadas na expressão latina de “Ratione Personae”, na verdade não se referem à pessoa processada, mas ao cargo por ela ocupado. Cessado o exercício, é natural que essa competência seja afastada. Havia problemas quanto ao momento final em que essa competência se firmava, impedindo sua alteração, até por questões de razoabilidade temporal do processo, já que a alteração do juízo competente após já finda a instrução, poderia levar à impunidade pela prescrição. Também aí, o STF julgava com técnica, estabelecendo que após a instrução, mesmo cessando o cargo, a competência especial se prorrogava sem alteração possível.
Estava tudo bem, tudo dentro da constitucionalidade, legalidade, tecnicidade e razoabilidade.

 

Mas, repentinamente, em 2025 se opera um retorno a 1964! Qual o motivo dessa involução repentina? Seria uma questão constitucional, legal ou técnica que se deixou passar por tantos anos? Somente em 2025 teria se operado uma “iluminação” do nosso chamado “Pretório Excelso”? Não é o que parece.

 

O que parece é que a atual composição do STF entende a lei, a Constituição e a jurisprudência, assim como todas as demais denominadas “fontes do direito” como uma
espécie de “Leito de Procusto” maleável à conveniência política do momento, não importando que essa maleabilidade venha simplesmente a destruir os ditames legais e constitucionais, bem como tornar infensas à segurança jurídica as manifestações
jurisprudenciais.

 

Na mitologia grega, o personagem Procusto, da historia do herói Teseu, foi um ladrão que assolou a Grécia Antiga. O sádico Damastes ou Polipêmon, como também era chamado Procusto, hospedava viajantes em sua casa, situada na serra de Elêusis entre Trezena e Atenas, local onde articulava singular procedimento com seus hóspedes: deitava-os em uma cama de ferro que dispunha serrando os pés daqueles que excedessem o tamanho do leito bem como distendendo violentamente as pernas dos que não preenchessem todo o comprimento da cama. Todos acabavam vítimas.

 

2 Assim é que se esticam e cortam as leis, a Constituição e a jurisprudência por meio de decisionismos políticos ou voluntarismo ativista.
Parafraseando Escrivá, vemos atualmente que a pretensa Justiça não passa em nosso país de um “falso incêndio de fogos fátuos, produto às vezes de cadáveres decompostos”. 3 Nada mais do que a aparência externa de “sepulcros caiados” (Mateus 23,27) 4 cujo interior está infecto, putrefato e é repasto de vermes.

 

Ora, já que a tese firmada retorna a 1964, por que não ressuscitar a Súmula 394, STF? E mais, por que não reavivá-la em forma de “Súmula Vinculante”, recurso
que inexistia à época? Porque não interessa na atual conjuntura firmar definitivamente qualquer entendimento. É necessária a maleabilidade de Procusto, a fim de que amanhã ou depois se possa retomar o entendimento oposto de acordo com as circunstâncias e os interesses políticos. Agora é interessante, por exemplo, manter os congressistas (Deputados e Senadores) reféns de um foro especial, cientes de que em qualquer caso podem ser incluídos em algum inquérito ou processo e que serão processados e julgados pelo STF.

 

É interessante no momento atual que saibam que detém um foro “privilegiado”, cujo “privilégio” é o julgamento (condenatório implacável) por um tribunal político de
exceção. É importante para esse tribunal deter instrumentos de exercício de poder não apenas jurídico, mas político.
O grande exemplo é o do ex – Presidente da República, cuja investigação, processo e julgamento se darão, após essa decisão, indiscutivelmente, pelo tribunal
supremo, ainda que não seja mais Presidente de coisa nenhuma. Aliás, na verdade, de acordo com o entendimento que se firmou desde 1999, todos os atos praticados perante o STF relativos a tal pessoa eram nulos por incompetência absoluta. A decisão em

 

2 ROSA, Alexandre Morais da, TOBLER, Giseli Caroline. Quando o Juiz pensa “Esse Cara Sou Eu” e se vale do jeitinho de Procusto. Disponível em http://emporiododireito.com.br/leitura/quandoojuiz- pensa-esse-cara-sou-euese-vale-do-jeitinho-de-procusto , acesso em 22.03.2025.

 

3 ESCRIVÁ, Josemaria. Forja. Trad. Emérico da Gama. 5ª. ed. São Paulo: Quadrante, 2023, p. 40. 4 "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia". destaque neste texto foi uma espécie de super “despacho saneador”, convalidando todas as nulidades e abusos. Mas, não existe nada disso! Isso não é juridicamente viável! O
que é nulo não se convalida! A pergunta que se nos é remetida pela jurisdição, que
deveria “dizer o direito”, é: E daí? Efetivamente não podemos crer na Justiça dos homens, mesmo porque não se pode atualmente nem mesmo saber no que poderíamos crer como Justiça humana. Afinal, tudo que um dia foi sólido se desmancha no ar.

5 REFERÊNCIAS

ESCRIVÁ, Josemaria. Forja. Trad. Emérico da Gama. 5ª. ed. São Paulo: Quadrante, 2023.
MACHADO, Antonio. Que difícil és… Disponível em https://es.wikisource.org/wiki/%C2%A1Qu%C3%A9_dif%C3%ADcil_es… , acesso em
22.03.2025. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001. ROSA, Alexandre Morais da, TOBLER, Giseli Caroline. Quando o Juiz pensa “Esse Cara Sou Eu” e se vale do jeitinho de Procusto. Disponível em http://emporiododireito.com.br/leitura/quandoojuiz-pensa-esse-cara-sou-euese- vale-do-jeitinho-de-procusto , acesso em 22.03.2025.

 

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia Aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – Graduado em Direito Penal e Criminologia e Professor de
Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós – graduação e cursos preparatórios.

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