Defensores púbicos, inscrição na OAB e a ADI 4.636: há facultatividade ou incompatibilidade?

Defensores púbicos, inscrição na OAB e a ADI 4.636: há facultatividade ou incompatibilidade?

De início, cabe esclarecer. Este texto se limita à análise dos efeitos práticos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.636 que deveriam ocorrer no comportamento do Sistema OAB. Não se trata de questionar, após a Adi 4.636, sobre a inclusão ou não de defensores públicos e defensoras públicas nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil para que sejam detentores de capacidade postulatória. A capacidade postulatória sem a inscrição na OAB já está consagrada no voto do ministro Gilmar Mendes com clareza solar. [1]

 

O tema aqui versado, então, será outro. Busca-se saber — após a ADI 4.636 — se defensores públicos e defensoras públicas podem se manter inscritos, ainda que facultativamente, na Ordem dos Advogados, como se a inscrição numa Ordem profissional fosse um adorno.

 

Antecipa-se a conclusão do texto: o caso é de verdadeira incompatibilidade. Caso contrário, a noção de ordem dos advogados seria ainda mais menosprezada, já não bastassem as decisões do STF na própria ADI 4.636 e na ADI 7.020, [2] que vedou a sanção disciplinar de suspensão dos advogados inadimplentes, mesmo após oportunizado o parcelamento [na presença da opção de parcelar, e nem assim pagar anuidades:  a inadimplência contumaz]. A Ordem, que deveria ser tão querida pela advocacia, sendo um verdadeiro patrimônio da democracia nacional, a cada dia segue sendo violada.

Adiante serão apresentadas as razões jurídicas, a respeito da necessidade de urgentes providências no Sistema OAB, especialmente, para que ocorra congruência na opção feita pela Defensoria, especialmente adequando-se as regras da OAB ao novo status jurídico.

Órgão mais aproximado ao Ministério Público

Vejamos que a Defensoria, enquanto órgão, a partir da conformação compreendida na ADI 4.636, passou a ser considera uma procuratura [3] mais assemelhada a outro órgão público, o Ministério Público. Não mais se assemelha aos órgãos de advocacia, sequer da advocacia pública.

O voto do relator, ministro Gilmar Mendes, plasmou a distinção entre defensoria e advocacia, até mesmo sua cisão do conceito de advocacia pública, assemelhando-a como afim ao Ministério Público: “A Defensoria Pública, como instituição apartada das Procuradorias dos Estados e Distrito Federal, é relativamente recente (jovem) se compararmos a outras afins, como o Ministério Público. Antes da gênese constitucional, não passava de mera assistência judiciária, advocacia dativa.” [fls. 1 e 2 do voto]

O relator ainda complementa que com o advento da Emenda Constitucional 80/2014 “qualquer possibilidade de crise identitária foi sanada. A Defensoria Pública teve sua personalidade bem definida, com atribuições devidamente explicitadas, sem qualquer espaço para dúvidas ou ilações. Enuncia o artigo 134 da Constituição Federal”. [fls. 3 do voto]

 

Vê-se, então, que é de coisa nova que se trata a Defensoria, não sendo mais da advocacia privada ou da advocacia pública que constavam na Constituição. O relator assevera: “não resta mais dúvidas […] em relação à natureza da atividade dos membros da Defensoria Pública. Tais membros definitivamente não se confundem com advogados privados ou públicos”. [fls. 10 do voto]

 

O voto dá a distinção entre defensoria e advocacia: “A bem da verdade, examinando o projeto constitucional de resguardo dos direitos humanos, podemos dizer que a Defensoria Pública é verdadeiro ombudsman, que deve zelar pela concretização do Estado democrático de direito, promoção dos direitos humanos e defesa dos necessitados, visto tal conceito da forma mais ampla possível, tudo com o objetivo de dissipar, tanto quanto possível, as desigualdades do Brasil, hoje quase perenes.”  [fls. 7 do voto]

O ministro Gilmar Mendes, inclusive, fez a analogia entre a Defensoria com o Ministério Público: “Ora, usando do raciocínio exposto na inicial, pode-se afirmar que os membros do Ministério Público também peticionam, sustentam oralmente suas teses, recorrem, participam de audiências. Todavia, não se cogita a exigência de inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. […] A Defensoria Pública, assim como o Ministério Público, já detém hierarquia institucional estabelecida, com regime disciplinar específico, estatutário, com fiscalização de uma corregedoria. Os termos estão devidamente definidos na lei de regência da instituição.” [fls. 11 do voto]

Atuação exclusiva do defensor; advocacia vedada

É preciso verificar que o exercício do cargo de defensor público atrai, desde 2004, e por dever constitucional, impedimento à advocacia privada:

Art. 134. […]

§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.    

Incompatibilidade

Se fora das atribuições institucionais não se pode advogar, o cargo de defensor se opera em dedicação exclusiva, e se os regimes são distintos entre defensoria e advocacia, o que cabe é reconhecer a incompatibilidade, nos termos da Lei 8.906/94. Na forma do artigo 27 a  “incompatibilidade determina a proibição total, e o impedimento, a proibição parcial do exercício da advocacia”.

A conclusão é reforçada na própria Lei Complementar 80, norma-matriz das Defensorias:

Art. 46. Além das proibições decorrentes do exercício de cargo público, aos membros da Defensoria Pública da União é vedado:

I – exercer a advocacia fora das atribuições institucionais;

II – requerer, advogar, ou praticar em Juízo ou fora dele, atos que de qualquer forma colidam com as funções inerentes ao seu cargo, ou com os preceitos éticos de sua profissão;

Da mesma forma, não se devem aplicar à Defensoria Pública as prerrogativas preconizadas pela Lei 8.906, Regulamento Geral da OAB, Código de Ética e Disciplina, e demais provimentos e regras do sistema da Ordem dos Advogados do Brasil. E todas as regras do Código de Processo Civil que mencionam “advogados”. Como as regras de quantificação de sucumbência no artigo 85 e o artigo 55 da Lei 9.099.

 

É uma cisão dolorosa, muito mais depois de todo o apoio e respeito oferecidos pela Ordem dos Advogados à Defensoria Pública ao longo das últimas décadas. Não é infundado dizer que a OAB lutou incansavelmente pelo estabelecimento das regras basilares da Defensoria, notadamente sua previsão constitucional e a Lei Complementar nº 80. A interpretação feita pela Defensoria trouxe como resultado o julgamento da ADI 4636, e isto impõe ao Conselho Federal da OAB uma adequação à novel realidade.

Adequações necessárias

Após o advento da ADI 4.636, não sendo a Defensoria uma advocacia, e sendo exigida a dedicação exclusiva em lei própria e na Constituição, não mais deveria a defensoria figurar nos provimentos e regras, especialmente aquele a respeito da advocacia pública. Cabe à Ordem dos Advogados detectar cada norma destas, e providenciar sua adequação. Urgentemente cabe a reforma do Provimento 114, neste sentido.

Cabe à Ordem dos Advogados deflagrar a apuração de todas as inscrições ativas de defensores públicos e defensoras públicas, em todas as seccionais, para efeito de registro da incompatibilidade e providências de praxe. Na composição de comissões, por exemplo, ser avaliado ingresso de defensores somente como membro ad hoc, ou convidado. E tantas outras questões decorrentes do julgado na ADI 4.636.

Por fim, é preciso notar que mesmo o Supremo Tribunal Federal tendo reconhecido, em tese, a possibilidade da Defensoria receber honorários, existe ainda uma discussão de matéria infraconstitucional, a saber, a inexistência de lei a quantificar o alegado direito aos honorários para defensores. O artigo 4º, Inciso XXI da Lei Complementar 80 fala em “executar e receber” honorários sucumbenciais. Mas, não traz qualquer regra de quantificação ou cálculo (que seria a concretização do suposto direito em tese).

 

Já o Código de Processo Civil e a Lei 9.099, quando prescrevem regras de cálculo de honorários (a quantificação do direito in concreto) são explícitas em usar a expressão “advogados”. Vide artigo 85 do Código de Processo Civil e artigo 55 da Lei 9.099, que rege o microssistema dos Juizados Especiais.[4] Logo, não devem ser aplicáveis a quem optou por não mais ser advogado.

 


[1] ADI 4636, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 04-11-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-025  DIVULG 09-02-2022  PUBLIC 10-02-2022.

[2] ADI 7020, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 17-12-2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 03-02-2023  PUBLIC 06-02-2023

[3] Fez-se uso de expressão cunhada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à justiça e as Procuraturas Constitucionais. Revista de Informação Legislativa. Brasília-DF. n. 116. Out/dez 1992. P.79-102. Acessível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/175998/000466608.pdf?sequence=1

[4] Vide:

Art. 85 [CPC] A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.

Art. 55 [Lei 9099] A sentença de primeiro grau não condenará o vencido em custas e honorários de advogado, ressalvados os casos de litigância de má-fé. Em segundo grau, o recorrente, vencido, pagará as custas e honorários de advogado, que serão fixados entre dez por cento e vinte por cento do valor de condenação ou, não havendo condenação, do valor corrigido da causa.

é procurador do Município de Vitória (ES), advogado, doutor em Direito da Cidade (Uerj) e mestre em Direito Tributário e Empresarial (UCAM).

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