Não é nova, para as empresas do agronegócio que trabalham com produtos primários e semielaborados (tais como grãos, madeiras e carnes), a discussão jurídica acerca dos valores exigidos pelos estados como contrapartida para a fruição de benefícios e incentivos fiscais e outros tratamentos tributários diferenciados relativos ao ICMS.
A reforma tributária traz novidades para o cenário.
De quais fundos estamos falando?
São numerosos os estados que exigem que os contribuintes de ICMS recolham outros valores como contrapartida ao direito de fruição de benefícios fiscais [1] e regimes diferenciados, ou até como condição para realizar a apuração mensal do Imposto ou para aplicar a imunidade nas exportações [2].
Cada estado que tenha instituído os fundos tem suas próprias leis e normas, mas, em síntese, a contribuição corresponde a uma alíquota cujo percentual incide sobre o valor do benefício ou da operação beneficiada, e deve ser recolhida de forma semelhante ao pagamento do próprio ICMS. Na prática, assemelhando-se a um simples adicional do Imposto; embora os recursos sejam destinados e vinculados aos respectivos fundos (e não acrescidos ao erário público de forma desvinculada, como, em regra, deve acontecer com as receitas de impostos).
A título ilustrativo, é possível citar os já antigos Fundo de Desenvolvimento do Sistema Rodoviário do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundersul) — Lei 1.963/1999 — e Fundo de Transporte e Habitação do Estado de Mato Grosso (Fethab) — Lei 7.263/2000.
Vale lembrar que, em 2016, no âmbito do Confaz [5], foi celebrado o Convênio ICMS 42/2016, autorizando os estados e o Distrito Federal a condicionar a fruição de incentivos e benefícios fiscais a que as empresas beneficiárias depositem em fundo de desenvolvimento econômico e ou de equilíbrio fiscal o montante equivalente a, no mínimo, dez por cento do respectivo incentivo ou benefício.
Após a celebração do Convênio no Confaz, outros estados passaram a exigir a “contribuição”. Por exemplo: Alagoas (Lei 7.835/2016); Ceará (Lei 16.097/2016); Paraíba (Lei 10.758/2016); Pernambuco (Lei 15.865/2016); Piauí (Lei 6.875/2016); Rio Grande do Norte (Lei Complementar 595/2017); Rio de Janeiro (Lei 7.428/2016); Acre (Lei 3.216/2016); Sergipe (Lei 8.180/2016); Mato Grosso (Lei 10.709/2016); e Tocantins (Lei 3.617/2019 e Lei 4.029/2022).
O Paraná, em 2020, havia publicado a Lei Complementar 231/2020 que previa que o Fundo (Funrep) seria abastecido (entre outras fontes) por depósitos realizados a título de contrapartida de incentivo ou benefício fiscal. No entanto, a medida nunca chegou a ser efetivamente implementada, tendo sido revogada em 2023, pela Lei 21.850/2023.
As normas acima ilustram quais são os tipos de fundos sobre os quais estamos tratando.
Qual a discussão jurídica relevante?
Apesar da ampla utilização deste método de obtenção de receita por parte dos estados, a cobrança da “contribuição” é objeto de uma emblemática controvérsia jurídica.
Pela perspectiva de quem entende serem inconstitucionais e ilegais as tais cobranças, os principais argumentos, atrelados à premissa de que não há voluntariedade por parte dos contribuintes (sendo, portanto, compulsória essa cobrança), referem-se (1) à violação à regra da não-cumulatividade do ICMS [20], eis que o valor destinado ao Fundo não gera, para os elos seguintes da cadeia, o direito a crédito; e (2) à violação à regra que proíbe a vinculação do produto da arrecadação de impostos [21], como é o caso do ICMS, pois o produto da arrecadação das “contribuições” fica vinculado ao fundo.
O tema tem sido levado à apreciação pelo Poder Judiciário. Citam-se, por exemplo:
– A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.056, que tratava do Fundersul-MS, caso em que o Supremo, em 2007, declarou a constitucionalidade da cobrança, diante da sua (suposta) ausência de natureza tributária;
– A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.365, a qual trata do FET-TO e foi julgada procedente, ou seja, nesse caso, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da cobrança, fundamentando-se na impossibilidade de vinculação da receita de imposto; e
– As Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7.363, 7.366 e 7.387, que tratavam do Fundeinfra e, em 2024, foram consideradas prejudicadas. Nesse caso, o Supremo fundamentou a decisão no fato de que houve, com a emenda constitucional da reforma tributária, uma substancial modificação no contexto dos parâmetros de controle de constitucionalidade, de modo que a ADI ficou “prejudicada”.
Na Paraíba, o Órgão Pleno do Tribunal de Justiça declarou a inconstitucionalidade [22] do artigo 2º e seus parágrafos da Lei 10.758/2016, que havia instituído a “contribuição” ao Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (Feef).
Como se observa dos exemplos mencionados, o tema tem sido objeto de numerosas discussões no âmbito do Poder Judiciário, mas não encontra, ainda, um entendimento pacífico e uniforme.
Quais as novidades advindas com a reforma?
Embora os estados tenham sempre negado que as tais “contribuições” tenham natureza jurídica de imposto (precisamente, de ICMS), a reforma tributária trouxe, para eles (estados) uma grave preocupação: a extinção do ICMS (substituído pelo Imposto sobre Bens e Serviços – IBS) implicaria a extinção dos valores recebidos a título das “contribuições”.
Durante a tramitação dos projetos de lei que tratavam da reforma tributária, a preocupação foi manifestada pelos estados; a exemplo de Mato Grosso do Sul, em que o tema foi debatido na Assembleia Legislativa [23], e de Mato Grosso, que contou com um ofício enviado pelo governador ao (então) presidente do Senado, Rodrigo Pacheco [24].
Com a extinção da arrecadação das “contribuições” aos fundos, os estados perderiam uma importante fonte de receita, que, a essa altura, já não faz qualquer sentido que os próprios estados neguem que se trata, na realidade, de ICMS.
Contudo, como foi observado pela doutrina tributária, aproveitar a Reforma para “constitucionalizar” as tais cobranças constituiria um retrocesso. Isso porque “o estabelecimento das contribuições estaduais (i) contraria o princípio do destino, ao cobrar a contribuição na origem; (ii) não concede créditos aos adquirentes dos bens tributados, contrariando a não cumulatividade plena do IBS; (iii) estabelecer alíquotas diferenciadas por setores econômicos distintos, indo de encontro com a alíquota-padrão para o IBS estadual; e (iv) prejudicar a competitividade dos bens estaduais exportados, ao onerá-los” [25].
Ao final, porém, o Poder Legislativo da União atendeu, em parte, aos interesses dos estados.
Assim, a Emenda Constitucional 132/2023 alterou o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (incluindo o artigo 136 no ADCT/CF) para estabelecer que os estados que possuíam fundos destinados a investimentos em obras de infraestrutura e habitação, que fossem financiados pelas contribuições sobre produtos primários e semielaborados como condição à aplicação de diferimento, regime especial ou outro tratamento diferenciado, relativos ao ICMS, poderão instituir contribuição semelhante, a qual deverá ser extinta em 31 de dezembro de 2043.
Em outras palavras, a reforma tributária “constitucionalizou” a cobrança até 2043.
Como ressaltou Fábio Pallaretti Calcini, “De antemão, apesar do jogo formal e de palavras, soa obvio e ululante o reconhecimento de que tais contribuições estaduais sempre tiveram, apesar de falta de autorização da Constituição, a natureza de tributo. Somente se evitava o efetivo reconhecimento, pois, nitidamente haveria a inconstitucionalidade. (…) Daí porque, esta alteração somente reforça e confirma que, desde sempre, tais contribuições tinham natureza tributária e, por conseguinte, seria inconstitucionais” [27].
Novos problemas
Com a reforma tributária, o ICMS e o ISS serão substituídos pelo IBS. Para a definição da alíquota de referência do novo Imposto, deveria ser levado em conta o montante que os estados e os municípios arrecadam, respectivamente, com ICMS e ISS.
Surge, diante deste conturbado cenário, o questionamento sobre se, na conta que será feita pelos estados para definição das alíquotas do IBS, será possível acrescer (ao valor do ICMS) as emblemáticas “contribuições” aos fundos.
Na busca pela resposta a esse questionamento, constata-se que a emenda constitucional determinou que a alíquota de referência deve assegurar que a receita dos estados e do Distrito Federal (DF) com o IBS (de 2029 a 2033) seja equivalente não apenas à redução do próprio ICMS, mas também “das receitas destinadas a fundos estaduais financiados por contribuições estabelecidas como condição à aplicação de diferimento, regime especial ou outro tratamento diferenciado” relativos ao ICMS, que estivessem em funcionamento em 30/04/2023 (artigo 130, II, do ADCT/CF).
De modo semelhante, a recém-sancionada lei complementar, trata da elaboração dos cálculos para a fixação das alíquotas de referência e determina que a receita de referência dos estados e do DF deve somar os valores correspondentes às “contribuições” em funcionamento em 30/4/2023 (artigo 350, da Lei Complementar 214/2025).
A reforma tributária, ao permitir que sejam instituídas (e cobradas até 2043) as contribuições semelhantes às já existentes, mantém acesa a discussão sobre a (in)constitucionalidade da cobrança desses valores.
Além disso, a reforma tributária, ao permitir a cobrança das contribuições até 2043, traz um possível óbice prático à implementação da medida.
O (aparente) problema de ordem prática é que a contribuição “nova” poderá ser cobrada até 2043 e a alíquota ou o percentual de contribuição não poderão ser superiores e a base de incidência não poderá ser mais ampla que os das respectivas contribuições vigentes em 30 de abril de 2023 (incisos I e IV do artigo 136 do ADCT/CF); entretanto, o ICMS será extinto em 2033.
Isto é, a “nova” contribuição terá de tomar por base as contribuições “antigas”, as quais, por sua vez, incidem sobre o valor do benefício do ICMS ou diretamente sobre o valor da operação (conforme a legislação de cada estado). Ora, se o ICMS deixa de existir, não haverá mais base para o cálculo da “nova” contribuição. Logo, em princípio, de 2033 a 2043, não haverá “base” para o cálculo da “nova” contribuição.
Na hipótese de se admitir que o valor das antigas contribuições era calculado com base (diretamente) no valor da operação, surgirá, também, um problema: que será a potencial bitributação; por um lado, será tributada pelo estado, por meio da “contribuição” e, por outro lado, será tributada pelo IBS (cuja competência será compartilhada entre estados e municípios).
Persistência das incertezas jurídicas sobre o tema
Conforme se percebe, o tema das “contribuições” vinculadas a fundos estaduais, cobradas como contrapartida ao direito de fruir de benefícios e incentivos fiscais, ou aplicar diferimento, regime especial ou outros tratamentos diferenciados relativos ao ICMS, permanece sendo objeto de questionável constitucionalidade, especialmente por conta da reforma tributária.
A reforma, em tese, buscou “constitucionalizar” os comportamentos dos estados, prevendo a possibilidade de instituição (em determinados casos) de “contribuições semelhantes”, até 2043. No entanto, isso tornou ainda mais evidentes as inconstitucionalidades que afetam a matéria.
Por fim, percebe-se que a não-cumulatividade ampla, a justiça tributária e a simplicidade, que eram pretensões da reforma tributária e são princípios constitucionais expressos do Sistema Tributário Nacional, não estão sendo observados quando o assunto é a cobrança das tais “contribuições”.
O presente texto pretende tão somente alertar para a relevância da continuidade do debate e do estudo aprofundado sobre as contribuições estaduais vinculadas aos fundos e os seus desdobramentos no contexto da reforma tributária. A complexidade da questão exige atenção às possíveis consequências jurídicas e econômicas dessas cobranças, especialmente considerando os desafios impostos pela transição para o novo modelo tributário.
[1] Exemplo: FUNDERSUL/MS – Lei 1.963/1999, artigo 13.
[2] Exemplo: FETHAB/MT – Lei 7.263/2020, artigo 8º.
[5] Conforme esclarece o Professor José Julberto Meira Junior, ao CONFAZ cabe, em colegiado, a produção de inúmeros instrumentos, que são reconhecidos como legislação tributária complementar, dentre os quais, especialmente, os denominados convênios ICMS (MEIRA JUNIOR, José Julberto. Convênios no âmbito do ICMS: moralidade, legitimidade e legalidade. Curitiba: Juruá, 2021, p. 148 e 161).
[20] O ICMS deve sempre respeitar a não-cumulatividade, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas posteriores; conforme determina a Constituição Federal, no artigo 155, § 2º, I.
[21] As receitas arrecadadas com impostos não podem ser vinculadas a órgão, fundo ou despesa, exceto as hipóteses já previstas no próprio texto constitucional; Constituição Federal, art. 37, XXII e art. 167, IV e § 4º.
[22] TJPB. Tribunal Pleno. Relator: Des. Luiz Sílvio Ramalho Júnior (aposentado). Acórdão. Ação Direta de Inconstitucionalidade 0801000-47.2019.8.15.0000. Data de juntada: 20/06/2022. Disponível em: https://tinyurl.com/44uddffb. Acesso em 11/04/2025.
[23] Mato Grosso do Sul. Assembleia Legislativa – Deputados da ALEMS debatem a Reforma Tributária e possível extinção do Fundersul. Publicada em: 21/06/2023. Disponível em: https://tinyurl.com/2kth5rd2. Acesso em: 11/04/2025.
[24] Mato Grosso. Secretaria de Estado de Fazenda. Governador propõe medidas para evitar “graves consequências” da Reforma Tributária em MT. Disponível em: https://tinyurl.com/dpr93rx3. Acesso em: 11/04/2025.
[25] MOREIRA, Aglaia; BORGES, Ana Claudia; LEITE, Luiza; e BARBOSA, Mariana. A Reforma Tributária e o museu de grandes novidades. In: A Reforma Tributária por Elas, p. 30-38.
[27] CALCINI, Fábio Pallaretti. Contribuições e fundos estaduais, reforma tributária e agronegócio. Publicado em: 31/05/2024. Disponível em: https://tinyurl.com/yc8fwxv3
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