O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio de sua 9º Câmara de Direito Criminal, entendeu que um ato só pode ser considerado como racista quando tiver o potencial de causar dano a uma pessoa ou ao grupo a que ela pertence, sendo necessário que a ação reproduza estigmas que pregam a noção de inferioridade constitutiva de minorias raciais.
No caso concreto, o TJ-SP negou recurso contra a decisão que absolveu uma mulher que chamou a vítima, um homem, de “bicha branca”. De acordo com a relatora, à época dos fatos o STF não havia julgado a ADO 26, que equiparou a homotransfobia aos crimes de racismo, razão pela qual a conduta caracterizaria apenas o crime de injúria simples, previsto no Código Penal, impondo-se, consequentemente, a extinção da punibilidade pela decadência, haja vista que não foi apresentada Queixa-Crime pela vítima.
Já em relação à ofensa de conotação racial, consistente no uso da palavra “branca” de forma ofensiva e discriminatória, a magistrada afastou a possibilidade do chamado “racismo reverso”, destacando o seguinte:
É inviável imaginar-se que a ‘raça’ branca, em qualquer momento da história de nossa sociedade, tenha sido julgada como inferior ou impulsionada ao extermínio, como efetivamente se sabe, ocorreu, por exemplo, com a população indígena e negra, esta última tendo sido vítima da escravidão por mais de 350 anos, entre 1535 e 1888.[1]
Percebe-se que de acordo com esse entendimento, o racismo somente existiria em uma espécie de interpretação histórico-retroativa hipotética, abrangendo pessoas e grupos que já sofreram discriminação ao longo da História e são classificados como “minorias” em um amplo sentido (não somente numérico).[2]
Sob tal perspectiva, autores como Silvio Almeida apresentam uma visão do racismo como “estrutural” de modo que a discriminação racial se fundamenta no exercício de poder sobre oprimidos. Sem isso é impossível, segundo o autor, atribuir vantagens ou desvantagens relativas à raça, cor, etnia etc. Os brancos, por exemplo, não teriam um histórico de discriminação racial ou de cor a justificar sua condição como vítimas de racismo.[3]
Em sentido contrário, destacamos que não é correto e não corresponde à realidade palpável a afirmação de que o racismo não se opera entre pessoas, mas decorre da “estrutura da sociedade”. O racismo, como qualquer ação humana, é algo que opera “de pessoas sobre pessoas”.[4] Estruturas e instituições são abstrações incapazes de ação ou omissão e quando se atribui a elas no discurso alguma conduta, isso se faz de forma obviamente figurada ou analógica.
Ademais, se o racismo é produto de “estruturas” abstratas e não de indivíduos reais, então é impossível a responsabilização penal de quem quer que seja. O Direito Penal não poderia ser aplicado à espécie de problema que se descreve como “racismo” porque esse instrumento coercitivo somente se dirige a pessoas naturais e não a “estruturas” e nem mesmo, em regra, a pessoas jurídicas. Se a questão realmente se reduz ao “estrutural” deveria ser estruturalmente solvida, não havendo espaço para a aplicação do Direito Penal. Obviamente essa é mais uma das consequências da adoção de teorias, ou melhor, ideologias sem assento na realidade.
Sobre o tema, são valiosas as lições de Silva:
(…) não é acidental uma teoria de “estrutura do racismo” emergir simultaneamente com a ideia de que negros não podem cometer racismo pois “não estão na estrutura do poder”. Bobagem! Mais uma arma política para autorizar ou desautorizar quem pode ou não ser racista. “Racismo”, vernacularmente, é discriminação de grupos ou indivíduos em razão de sua raça. Qualquer coisa diferente disso, não tenha dúvida, leitor: é malabarismo político-ideológico. Mas não deixe de observar a realidade das coisas: o racismo de negros contra brancos é possível e deve ser rigorosamente combatido conforme a legislação em vigor. Por isso, é conveniente suspender o uso do chavão “racismo reverso”, pois, além de falso, em razão de seu conteúdo esvaziado, seu uso é quase sempre esdrúxulo ou histérico.[5]
Com efeito, é notável que os artificialismos do chamado “Racismo Estrutural” e do “Racismo Reverso” se retroalimentam e dependem um do outro, conforme expõe Santos:
Perceba: tanto a teses do racismo reverso quanto a tese do racismo estrutural foram criadas pelos neorracistas identitários, pois a sobrevivência de uma depende da sobrevivência da outra. Então, ambos os discursos são repetidos exaustivamente, um em tom intelectual e acadêmico, para lhe conferir razão, e outro em tom de chacota, para ridicularizar qualquer um que pense diferente. Porém, um não vive sem o outro, os dois conceitos são interdependentes, de modo que para defender que o racismo reverso não existe é indispensável defender a existência (unicamente) do racismo estrutural (grifos no original). [6]
No mesmo sentido se manifestam William Douglas e Irapuã Santana do Nascimento da Silva, cujo texto tomamos a liberdade de transcrever em parte:
A ideia de que não existe o “racismo inverso” ou “reverso” termina por veicular uma espécie de “autorização” (i)moral para que haja um movimento de refluxo, no qual, ao invés de se extirpar o racismo, permite-se sua prática por aqueles que tradicional, histórica e majoritariamente o sofrem. Contra essa ideia, dois negros podem ser citados: Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela, ambos defensores vigorosos da política de não devolver ódio com ódio, nem racismo com racismo. Ambos defenderam com veemência a superação dos ressentimentos e o começo de um novo tempo onde não se permita que ninguém discrimine o próximo. (…).[7]
Como bem destaca Patrícia Silva, utilizando-se de uma expressão cunhada por Betty Friedan, não fosse a discriminação de brancos por negros atitude racista, estaríamos diante de algo inominável, “a coisa sem nome”. Afinal, se isso não fosse racismo, seria então o quê?[8]
Justamente por isso, sob o ponto de vista jurídico-penal, nos parece absolutamente inconstitucional qualquer interpretação que exclua pessoas brancas e outros grupos supostamente majoritários da tutela antirracismo. Isso porque como toda “construção social”, o racismo é erigido e sustentado, não por estruturas abstratas, mas por pessoas reais que, desgraçadamente, o incorporam. Essa incorporação se manifesta em práticas e preconceitos geradores de discriminação negativa, segregação e opressão em geral. É desse caldeirão de ações humanas que realmente emergem estruturas e até instituições jurídicas (v.g. a escravidão, o apartheid e o Holocausto) opressivas, dominadoras, exploradoras e cruéis.
Mediante essa reflexão sobre a origem subjetiva do Racismo e de qualquer “construção social” se pode perceber a evidência de que o Racismo consiste, em primeiro lugar e plano, no tratamento intersubjetivo, na percepção distorcida do “outro”, não sendo possível dar ares de complexidade a uma simplificação indevida que reduz o Racismo ao seu produto final como constructo e estrutura social, ocultando ou olvidando deliberadamente seus antecedentes que, longe de serem contingentes, são absolutamente necessários e constitutivos.
A dominação é o resultado final de todo um processo racista que tem início no indivíduo humano e pode atingir qualquer categoria de pessoas, não importando seu “status” social momentâneo ou mesmo ao longo da História. Tanto é fato que, por exemplo, a alegação tão comum de que os brancos nunca foram oprimidos por outros povos brancos ou negros e mesmo escravizados é totalmente falsa. E a noção do escravizado como inferior ou subalterno, seja por questões de origem, política, cultura etc., é também invariável.
Antes de escrever publicamente que os brancos “nunca foram escravizados” e que “nunca houve algo próximo à escravidão e exploração imposta aos negros e índios a povos classificados como brancos”, é preciso livrar-se dos “manuais” levianos e dos lugares comuns para efetivamente estudar obras que tragam a história humana com base em pesquisa de qualidade e fontes primárias. Lembremos com Silveira que “quem pensa pouco e mal, imagina muito e pessimamente”.[9]
Nesse cenário, com o objetivo de trazer luz ao debate e não nos limitar ao discurso “politicamente correto”, invocamos o estudo de Trespach:
A escravidão era praticada no continente americano antes mesmo da chegada de Colombo: os povos ameríndios mantinham mercados de escravos e com eles faziam sacrifícios humanos. Os espanhóis e portugueses escravizaram índios e africanos, mas milhares de chineses também foram trazidos como mão de obra escrava para a América, assim como europeus. Três quartos de todos os imigrantes vieram para o Novo Mundo sob regime de “servidão por contrato”. [10]
Note-se que com um mínimo de seriedade e pesquisa é muito fácil constatar que o fenômeno da escravidão não se reduz a determinada raça, cor ou etnia. Como bem aduz Silva:
Não é equivocado apontarmos a escravidão africana como a causa do racismo brasileiro, mas é equivocado afirmar que o racismo foi utilizado para justificar a escravidão, uma vez que esta atingiu grupos diversos na humanidade, gerando cenários em que, por exemplo, gregos escravizavam gregos, muçulmanos escravizavam cristãos etc.[11]
Um exemplo histórico brasileiro, comumente omitido ou ocultado pela intelectualidade “chapa branca” diz respeito aos Quilombos, em especial a Palmares, bem como outros levantes similares. Silva chama a atenção para o fato comprovado de que em Palmares havia pessoas escravizadas (negras). Também lembra que em 1835, os malês, escravos de origem muçulmana da Bahia, rebelaram-se “contra a escravidão…deles próprios”, mas seus planos eram de “exterminar os brancos e escravizar os mulatos”.[12] Perceba-se, portanto, que para a imposição de superioridade, domínio, exploração, discriminação, segregação e até escravidão não é pré-requisito a detenção prévia do poder. Tudo isso pode acontecer em meio a lutas, revoltas, embates, conflitos para uma futura detenção do poder.
Não obstante, é preciso ter cuidado com a amplitude que se pretenda dar ao problema de condutas racistas contra brancos no Brasil. Mister se faz ter noção de proporcionalidade. Não é possível equalizar indevidamente as dimensões do racismo promovido contra negros e contra brancos na realidade brasileira histórica e contemporânea. Retomando o equilibrado ensinamento de Silva:
Por sua vez, cabe refletir: o racismo de negros com brancos é tão frequente quanto o de brancos com negros? Não! Nenhum momento de nosso passado ou presente sustenta que brancos foram ou são tão vítimas de racismo como os negros. É necessário, portanto, sermos justos e honestos para aprender a separar o joio do trigo. Caso contrário, ficaremos mais próximos de ser a imagem e a semelhança de quem criticamos. [13]
Tendo isso em mente, seria possível, não negando a possibilidade de crimes de racismo contra brancos, prever uma causa geral de aumento de pena (de um terço a metade, por exemplo) ou uma figura qualificada quando a discriminação é perpetrada contra pessoas negras. Essa exacerbação punitiva seria obediente à proporcionalidade, considerando a história e mesmo a realidade contemporânea, de modo que não haveria violação da igualdade, mas a concretização de igualdade material em superação à mera igualdade formal. Fato é que mesmo outros grupos comumente vítimas de discriminação, preconceito e segregação (v.g. judeus, indígenas, gays etc.) não contam com uma história tão intensa em solo brasileiro, de modo que não seria injusto um tratamento mais duro ao racismo de cor relativo à vitimização dos negros na realidade nacional.
Em conclusão, destacamos que o famigerado “Racismo Reverso” realmente não existe, nunca existiu e nem existirá. O que existe desde sempre é o “Racismo” sem adjetivações ou qualificações. Racismo é Racismo, não importando de quem parta e a quem atinja o preconceito, a discriminação negativa, a segregação, a ofensa ou a opressão. Pretender minimizar de qualquer maneira alguma forma de preconceito e suas consequências ou desdobramentos, é abrir as portas para o ódio racial, o conflito e o ciclo vicioso que se segue nessas circunstâncias.
[1] [1] Nesse sentido: TJ-SP confirma decisão que negou denúncia por racismo reverso . Acesso em: 11.11.2024.
[2] A concepção de “minorias” não somente pelo critério quantitativo (estatístico), mas referindo-se ao tratamento discriminatório negativo conferido a certos grupos remonta aos estudos de Wirth, seguido por Wagley e Harris. Cf. WIRTH, Louis. The Problem of Minority Groups. In: LINTON, Ralph (org.). The Science of Man in the World Crisis. New York: Columbia University Press, 1945, “passim”. WAGLEY, Charles, HARRIS, Marvin. Minorities in the Language of Victorian Politics. London: Allen Lane, 1973, “passim”.
[3] ALMEIDA, Silvio. O que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 25 – 29.
[4] KAMEL, Ali. Não Somos Racistas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 66.
[5] SILVA, Patrícia. O Mínimo Sobre Racismo no Brasil. Campinas: O Mínimo, 2024, p. 49 – 50.
[6] SANTOS, Eduardo dos. Racismo Reverso? Discriminação Contra Maiorias? Só o Racismo Estrutural é Racismo? Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-out-28/racismo-reverso-discriminacao-contra-maiorias-so-o-racismo-estrutural-e-racismo/#:~:text=N%C3%A3o%20existe%20racismo%20reverso%20porque,de%20legitimar%20condutas%20criminosas%20revanchistas , acesso em 02.11.2024.
[7] DOUGLAS, William, SILVA, Irapuã Santana do Nascimento da. Não existe monopólio sobre racismo, tampouco o “racismo reverso”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-ago-31/opiniao-nao-existe-monopolio-crime-racismo , acesso em 14.02.2023.
[8] SILVA, Patrícia. O Mínimo Sobre Racismo no Brasil, p. 139.
[9] SILVEIRA, Sidney. Provérbios do Abismo. Inédito, 2023. Aforismo hoje disponível em https://www.facebook.com/sidneylsilveira , acesso em 22.02.2023.
[10] TRESPACH, Rodrigo. Histórias não (ou mal) contadas – Escravidão, do ano 1000 ao século XXI. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2018, p. 63.
[11] SILVA, Patrícia. O Mínimo Sobre Racismo no Brasil. Campinas: O Mínimo, 2024, p. 14.
[12] SILVA, Patrícia. O Mínimo Sobre Racismo no Brasil. Campinas: O Mínimo, 2024, p. 186. A autora referencia a obra de Antônio Risério. Cf. RISÉRIO, Antônio. A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros. São Paulo: Topbooks, 2012, p. 406. Várias outras obras são referenciadas por Silva, dando conta da presença de escravidão negra no Quilombo de Palmares. Cf. MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
[13] Op. Cit., p. 50.
AUTORES
Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós – graduação e cursos preparatórios.
Francisco Sannini Neto, Delegado de Polícia, Mestrando em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-Graduado com Especialização em Direito Público, Professor da Academia de Polícia Civil de São Paulo e Professor do Complexo Damásio de Ensino.