A obrigatoriedade da tabela da OAB e o conflito entre Poderes

A obrigatoriedade da tabela da OAB e o conflito entre Poderes

O artigo 85, § 8º, do Código de Processo Civil (CPC), determina que o juiz fixará os honorários advocatícios por apreciação equitativa quando inestimável ou irrisório o proveito econômico ou, ainda, quando muito baixo o valor da causa. Embora frequentemente os juízes e desembargadores estipulem parâmetros próprios de valoração, tal disposição deixa uma margem elevadíssima de subjetividade no valor arbitrado, o que prejudica a previsibilidade das decisões judiciais.

Trata-se, na realidade, de uma importação de longa discussão acerca da remuneração do advogado dativo. De um lado, o artigo 22, § 2°, do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) estipulava que os honorários fixados por arbitramento judicial não poderiam “ser inferiores aos estabelecidos na tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB”. Do outro, formou-se entendimento no Superior Tribunal de Justiça de que a tabela da Ordem dos Advogados do Brasil teria natureza informativa e não vinculante (AgInt no REsp 1.751.304/SC), o que resultou na fixação do Tema Repetitivo 984/STJ, ainda em 2019:

“1ª) As tabelas de honorários elaboradas unilateralmente pelos Conselhos Seccionais da OAB não vinculam o magistrado no momento de arbitrar o valor da remuneração a que faz jus o defensor dativo que atua no processo penal; servem como referência para o estabelecimento de valor que seja justo e que reflita o labor despendido pelo advogado; (…)”

As similaridades do arbitramento judicial de honorários do advogado dativo e da fixação por apreciação equitativa dos honorários sucumbenciais são muitas — o que gerou uma ampliação horizontal do embate entre OAB e STJ para, potencialmente, incidir sobre qualquer ação entre privados em que seja feita a fixação de honorários por equidade.

É neste contexto que foi promulgada, em 2 de junho de 2022, a Lei 14.365/22, que alterou o Estatuto da Advocacia, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal para uma série de questões: definir atividades privativas, assegurar prerrogativas, regular sociedades advocatícias e versar sobre honorários advocatícios. Para o presente artigo, o ponto mais relevante foi a inclusão do § 8º-A ao artigo 85 do CPC, fixando critério objetivo ao arbitramento de honorários sucumbenciais por equidade:

“§ 8º-A. Na hipótese do § 8º deste artigo, para fins de fixação equitativa de honorários sucumbenciais, o juiz deverá observar os valores recomendados pelo Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil a título de honorários advocatícios ou o limite mínimo de 10% (dez por cento) estabelecido no § 2º deste artigo, aplicando-se o que for maior.”

A resposta legislativa é clara: se antes havia, agora não há mais margem para subjetividade. A lei estabelece duas bases de cálculo (a tabela da seccional da OAB e 10% do valor da causa) e um critério objetivo para sua adoção (qual for maior). Ponto.

O problema é que, para que a lei não se torne letra morta, é necessária cooperação do Judiciário. Instado a se manifestar especificamente sobre a superação do entendimento anterior em razão da nova previsão legal, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou da seguinte maneira:

“II – O entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que prevaleceu na Primeira Seção, é de que o disposto no § 8º-A do art. 85 do CPC/2015 serve apenas como referencial, não vinculando o magistrado no momento de arbitrar a verba honorária, devendo observar os deslindes do caso concreto para fixar os honorários advocatícios por equidade. Nesse sentido: AgInt no AgInt na Rcl n . 45.947/SC, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 18/6/2024, DJe de 26/6/2024; AgInt no REsp n. 2.121.414/SC, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 10/6/2024, DJe de 17/6/2024; AgInt no AREsp n. 2.524.416/SP, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 24/6/2024, DJe de 27/6/2024.” (STJ – AgInt no REsp: 2182939 RS 2024/0329875-8, Relator.: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 12/03/2025, T2 – 2ª Turma, Data de Publicação: DJEN 18/03/2025)”

 

Os julgados citados por este acórdão, por sua vez, são igualmente claros:

 

“6. De notar também que, segundo a jurisprudência desta Corte de Justiça, a previsão contida no § 8º-A do art. 85 do CPC, incluída pela Lei n. 14.365/2022 – que recomenda a utilização das tabelas do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil como parâmetro para a fixação equitativa dos honorários advocatícios -, serve apenas como referencial, não vinculando o magistrado no momento de arbitrar a referida verba, uma vez que deve observar as circunstâncias do caso concreto para evitar o enriquecimento sem causa do profissional da advocacia ou remuneração inferior ao trabalho despendido. (AgInt no AgInt na Rcl n. 45.947/SC, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, julgado em 18/6/2024)
7. A tabela de honorários da OAB, por sua vez, é referência utilizada para estabelecer os valores devidos aos advogados por seus serviços, mas não é, necessariamente, vinculativa. Ao se determinar os honorários advocatícios, consideram-se fatores como a complexidade do caso, o tempo despendido e a capacidade financeira das partes envolvidas. 8. Agravo Interno não provido. (AgInt no REsp n. 2.121.414/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 10/6/2024)”

Não se trata, contudo, de questão exclusiva da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, mas sim de posição deliberada de todo o tribunal. No Recurso Especial 2.125.425/SP, interposto em razão da violação ao artigo 85, § 8º-A do CPC por sentença proferida após a vigência da nova lei — marco temporal adotado pelo próprio STJ para vigência de lei sobre honorários advocatícios (AgInt no REsp 2.106.286/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 1/7/2024) — a 4ª Turma ignorou a superação estabelecida pelo novo diploma legal e reiterou o entendimento anterior à nova lei.

Argumentou o recorrente:

“É que, antes da referida alteração legislativa, o arbitramento da verba sucumbencial ficava à mercê do subjetivismo, sendo que muitas vezes os valores fixados pelos Magistrados acabavam por aviltar a remuneração do advogado. Mas, com a novidade legislativa supramencionada, os critérios passaram a ser objetivos, acabando com a subjetividade antes existente, devendo a partir de então serem observados os valores recomendados pelo Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil a título de honorários advocatícios ou o limite mínimo de 10% (dez por cento) estabelecido no § 2º deste artigo, aplicando-se o que for maior.
Houve, efetivamente, a utilização de julgados – alguns anteriores à vigência da Lei 14365/22 e outros lastreados neles – para se evitar a discussão sobre o texto legal ser, ou não, compatível com o entendimento anterior. Não se analisou, a despeito da insistência do advogado, o fato de o artigo efetivamente ter suprimido as brechas de subjetividade do texto anterior” (fl. 241).

Tal argumento, contudo, não foi analisado frontalmente pela turma julgadora. A problemática do overriding foi praticamente ignorada em sede de decisão monocrática e, posteriormente, no acórdão que julgou o agravo interno. Ambas as decisões foram formadas quase que integralmente por transcrições de julgados anteriores à Lei 14.365/22 e, quando lastradas em julgados posteriores à referida lei, tais julgados constituíam mera reiteração dos anteriores.

O que fazer quando há resistência à aplicação de texto explícito de lei?
O uso da jurisprudência defensiva para impedir a efetiva discussão da alteração legislativa realmente impede uma discussão ampla e fundamentada acerca do texto do § 8º-A, mas também ignora o próprio contexto da Lei 14.365/22 — cujo projeto foi apresentado, em parte, justamente como uma reação do Poder Legislativo ao entendimento anterior, aliada a intensa participação da Ordem dos Advogados do Brasil na concepção e condução do projeto de lei.

Eventual objeção ao teor legal deve ser apresentada de forma clara e direta, possibilitando discussão judicial ampla e o amadurecimento da jurisprudência. A resistência à aplicação de norma legal por parte dos magistrados não deve ser motivo para que outros hesitem a aplicar texto explícito de lei.

A resistência velada à aplicação do parágrafo 8º-A passa uma mensagem preocupante ao legislador – o descumprimento à lei não é fruto de obscuridade do texto legal, a ser remediada com nova redação. Tampouco se trata de exercício de controle de constitucionalidade, este legítimo e processado de forma ordinária pelo ordenamento jurídico. É, efetivamente, uma escolha pessoal e potestativa de cada magistrado.

A única maneira de garantir a aplicação da lei é uma persuasão da magistratura e uma defesa incessante da dialeticidade no processo civil — uma vez que a negação à aplicação da lei sem justificação expressa constitui vício de fundamentação (artigo 489, II, do CPC) e violação de princípio constitucional (artigo 93, IX, da Constituição). Também há nítido prejuízo à segurança jurídica e a isonomia, submetendo o direito da parte a verdadeiro jogo de azar.

Salutar, portanto, a postura de juízes e desembargadores que, apesar da problemática exposta, não se furtam a aplicar a lei da forma que foi concebida. No TJ-SP, é notório o movimento de parte de desembargadores neste sentido (Apelação Cível 1001403-49.2021.8.26.0196; 1052859-62.2021.8.26.0576; 1000580-84.2022.8.26.0505). Só assim garantiremos, efetivamente, a defesa do bom direito.

 

*agradeço ao meu sócio e amigo, Fernando Castanheira Lamenza, pela atenta revisão.

 

Por: Henrique Zollner Carneiro de Oliveira- é advogado, sócio de Dantas, Lamenza e Carneiro de Oliveira Sociedade de Advogados, bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo – Largo de São Francisco e especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

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