Execução imediata da pena e o princípio da presunção de inocência

Execução imediata da pena e o princípio da presunção de inocência

A Convenção Americana de Direitos Humanos, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status de supralegalidade, preconiza que “os Estados Partes se comprometem a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso”. Através da interpretação extensiva do presente dispositivo, depreende-se ser dever imposto ao Estado cumprir a sanção estatal imposta mediante a observância das balizas do devido processo legal, corolário de um sistema verdadeiramente acusatório.

Para além da observância de questões formais, impõe-se que a pena fixada guarde correspondência direta com a natureza do crime praticado, se coadunando com o princípio da proporcionalidade e de todas as circunstâncias existentes no momento da prática da ação ou omissão por parte do agente.

Dando concretude ao disciplinado na normativa internacional, o aparato normativo interno pressupõe que a pena privativa de liberdade só pode ser executada após o réu exaurir todas as instâncias recursais, devendo sua liberdade ser preservada até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, sendo este corolário do princípio da presunção de inocência. No que tange ao referido princípio, Renato Brasileiro [1] prescreve que: No ordenamento pátrio, até a entrada em vigor da Constituição de 1988, esse princípio somente existia de forma implícita, como decorrência da cláusula do devido processo legal. Com a Constituição Federal de 1988, o princípio da presunção de não culpabilidade passou a constar expressamente do inciso LVII do art. 5º: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Em síntese, pode ser definido como o direito de não ser declarado culpado senão após o término do devido processo legal, durante o qual o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para a sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório).

Manifestação da presunção de inocência

Em relação à extensão conceitual do princípio ora comentado, reforça-se que a presunção de inocência possui duas formas diferentes de manifestação, podendo se apresentar como uma norma de tratamento e julgamento.

Como regra de julgamento, impõe-se que o magistrado só poderá desconstituir o estado de inocência do réu, característica inata ao indivíduo dotado de dignidade, se houver elementos, colhidos em obediência aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, que inclinem o julgador para além da dúvida razoável. Ademais, caso padeça dúvida em relação ao caso penal, deve-se absolver o acusado por meio da aplicação da regra de julgamento do in dubio pro reo, expressamente prevista no artigo 386, inciso VII do Código de Processo Penal.

No que tange a regra de tratamento, deve-se garantir que o réu seja tratado pelo estado e pela sociedade como inocente até o exaurimento das espécies recursais. Assim, até o trânsito em julgado, o réu deve ser considerado inocente e ter a sua liberdade resguardada. Em relação à regra de tratamento, ela possui duas dimensões: Uma dimensão endoprocessual e uma dimensão extraprocessual.

 

Por dimensão endoprocessual, entenda-se que o magistrado deve resguardar a liberdade plena do réu durante toda persecução penal, apenas deferindo medidas cautelares de maneira excepcional e mediante a devida demonstração. Ademais, a dimensão endoprocessual também se manifesta pela distribuição do ônus da prova conferido a acusação de modo exclusivo, cabendo a ele provar os fatos constitutivos da prática do fato típico, antijurídico e culpável.

Já em relação a dimensão extraprocessual, impõe-se um encargo da sociedade em tratar aquele indivíduo como inocente, pouco importando a gravidade do ilícito supostamente praticado e da vida pregressa do seu autor.

Dignidade da pessoa humana

Nessa dimensão, como consectário lógico do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, é imprescindível a preservação da honra, imagem, privacidade e inviolabilidade da vida do réu, protegendo-o da publicidade sensacionalista que visa rotulá-lo a fim de angariar engajamento, transformando-o em um mero objeto inanimado a serviço da crença punitiva. Sob esse aspecto, Bauman [2] aduz que “a batalha contra o crime é apresentada como um excitante espetáculo midiático-burocrático”.

Diante do explicitado, a presunção de inocência se reveste como um princípio fundamental no sistema acusatório, protegendo o indivíduo de estigmas e abusos praticados pela sociedade e pelo poder punitivo. Todavia, embora a dimensão endoprocessual impeça o imediato cumprimento da pena fixada, o STF passou a dar o entendimento diverso sobre a temática nos últimos anos, apresentando argumentos de cunho social e político para justificar a mitigação dessa garantia.

Constitucionalidade

Em relação à execução imediata da pena, o STF enfrentou no ano de 2019 a discussão acerca da constitucionalidade do artigo 283 do CPP, inserido no código através da Lei n° 13.964/2019, em que porta a seguinte redação: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.”

Discutia-se, inicialmente, se a execução imediata da pena após a confirmação da sentença condenatória pelo tribunal de 2ª instância violaria ou não as diretrizes do princípio da presunção de inocência. Embora o texto constitucional e convencional seja claro e não estabeleça qualquer exceção no sentido de estabelecer a impossibilidade de cumprimento de pena enquanto não se exaurir as vias recursais, o STF, no HC n° 126.292, de relatoria do ministro Teori Zavascki, permitiu a execução imediata da pena após confirmação em 2ª instância, argumentando que as instâncias extraordinárias têm cognição limitada ao direito.

Diante de todas as controvérsias, o Partido Comunista do Brasil (PCB) manejou as ADC’s n° 43, 44 e 54, visando a obter a declaração de constitucionalidade do dispositivo legal supracitado. Ao final do julgamento, o STF chegou-se à conclusão de que a execução imediata da pena violaria os pressupostos constitucionais e convencionais materializados no princípio da presunção de inocência.  Para fins de melhor percepção, analisa-se o trecho do voto do ministro relator Marco Aurélio (Brasil, 2019):

A Carta Federal consagrou excepcionalmente a custódia no sistema brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória. A regra é apurar para, em execução de título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, prender (…)

Ninguém é culpado até o trânsito em julgado

Portanto, após o julgamento, foi consignada a impossibilidade de execução imediata da pena enquanto ainda pendente de impugnação por qualquer via recursal considerando que, segundo a lição do princípio da presunção de inocência, ninguém deverá ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Em linhas gerais, enquanto houver a possibilidade de discussão da decisão judicial, o réu deve ser considerado inocente, devendo ter o seu direito de ir e vir resguardado.

Assim, a partir do momento em que se estabeleceu a constitucionalidade do artigo 283, retomou-se ao entendimento proferido pelo STF no HC 84.078/MG, de relatoria do então ministro Eros Grau, em que afirmou claramente que “a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar”.

Portanto, a prisão durante o processo deve ser decretada apenas como medida cautelar, devendo ser cumprindo os requisitos dos artigos 312 e 313 do CPP, de forma concomitante e objetiva, não sendo enxergada como mera antecipação de pena devido a sua finalidade estritamente acessória.

Em verdade, enxerga-se que há uma imersão autoritária que se consubstancia na “crença eficienticista” que assola o Poder Judiciário, acarretando na supervalorização de interesses genéricos em detrimento do direito de liberdade concreta do indivíduo submetido ao peso arraigado do poder punitivo.  Esse cenário pode ser visto na atualidade na discussão acerca do Tema de n° 1068 do STF em que se discute a possibilidade de execução imediata da pena no Tribunal do Júri.

Dessa maneira, a mesma cultura autoritária identifica direitos e garantias como óbices para suas satisfações pessoais, deturpando instrumentos de garantia como mecanismos legitimadores da sua crença, mesmo que se mostrem dissonantes com a própria natureza epistemológica do instituto utilizado como “arma”. Assim, nos parece que uma contenção virou um subterfúgio que alimenta uma suposição, gerando uma expansão desarrazoada do poder punitivo estatal.

No processo penal democrático, deve-se levar como referência o formalismo protetivo conferido as regras e aos princípios, considerando que o processo penal serve como salvaguarda de direitos e garantias fundamentais, não sendo compreendido apenas como uma mera solenidade para se alcançar uma pena eminente (e se for o caso).

Referências

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Ação Declaratória de Constitucionalidade de n° 43. Relator: Min, Marco Aurelio. Data do julgamento: 17/11/ 2019. Disponível aqui.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário de n° 1.235.340. Relator; Min. Luís Roberto Barroso. Data do julgamento: 12/09/2024. Disponível aqui.

BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único– 8. ed. rev.,ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020

[2] BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.p,97

  • é advogado criminalista, membro do Grupo de Estudos Avançados em Direito Penal Econômico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), membro do Grupo de Pesquisa de Culpabilidade e Responsabilidade no Direito Penal Econômico do PPGD da Universidade Federal da Bahia (UFBA), coordenador estadual Adjunto do IBCRIM/BA e membro do Departamento de Publicações do IBADPP.

     

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