Exportadores em Mato Grosso e Lei Kandir: dilema da transferência de créditos segundo jurisprudência do STJ

Exportadores em Mato Grosso e Lei Kandir: dilema da transferência de créditos segundo jurisprudência do STJ

O ICMS é um imposto regido pelo princípio da não-cumulatividade (artigo 155, §2º, I, da Constituição), e, por isso, o tributo cobrado na operação deve ser compensado pelo imposto devido nas operações anteriores. O objetivo central deste princípio é evitar o fenômeno da tributação em cascata, em que o imposto incide sobre outro imposto já embutido no preço, distorcendo os custos e onerando artificialmente a cadeia produtiva.

No contexto das exportações, o sistema constitucional concede um tratamento especial e reforçado. O artigo 155, §2º, X, ‘a’, da Constituição, estabelece a não incidência do ICMS para as exportações de mercadorias para o exterior, mantendo-se os créditos das operações anteriores. Esta imunidade não é um mero benefício, mas uma ferramenta estratégica de política econômica, desenhada para promover o comércio exterior e a competitividade da produção brasileira. Isso significa que todo o ICMS pago na aquisição de insumos, matérias-primas, serviços e demais itens necessários à produção do bem exportado é plenamente recuperável.

O resultado matemático é inevitável: se de um lado não há débito (venda imune) e do outro há um volume significativo de créditos (das compras para produzir o bem exportado), o saldo final será sempre credor. Portanto, a acumulação de créditos por empresas exportadoras não é uma anomalia ou um planejamento agressivo; é uma consequência natural e essencial do sistema tributário, que busca cumprir o mandamento constitucional de incentivar as exportações.

Créditos de ICMS acumulados

A dúvida que fica para as empresas exportadoras, no entanto, é o que fazer com o grande volume de créditos de ICMS acumulado. O artigo 25, §1º, II, da LC 87/1996 estabelece de forma clara que, esgotada a compensação entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, o saldo credor remanescente pode ser transferido pelo sujeito passivo a outros contribuintes do mesmo estado.

Porém, em aparente contraposição à vontade do legislador federal, o regramento infralegal do Estado de Mato Grosso, previsto no artigo 125, § 4º, de Regulamento do ICMS, estabelece a possibilidade de transferência do saldo credor apenas para estabelecimentos da mesma empresa ou de empresa interdependente.

Esta norma busca circunscrever o mercado de créditos a operações intragrupo, reduzindo drasticamente a liquidez e o valor econômico desses ativos para o exportador, restringindo o alcance do próprio artigo 29, parágrafo único, II, da Lei Estadual nº 7.098/1998.

Surge, portanto, um conflito aparente de normas: o direito amplo e geral da União (Lei Kandir) versus a restrição específica do Estado (RICMS/MT). A solução deste impasse determina se um exportador pode vender seu crédito para qualquer interessado no mercado ou se está limitado a negociar apenas dentro de seu próprio conglomerado.

Entendimento do STJ

O STJ, uniformizador da interpretação e aplicação da legislação federal, já se pronunciou de forma categórica e reiterada sobre a questão. Como visto no AgInt no REsp n. 2.115.789/MG (2025) e em outros precedentes: “O disposto no art. 25, § 1º, da Lei Complementar n. 87/96 (…) cuida de norma de eficácia plena, não sendo permitido à lei local impor qualquer restrição ou vedação à transferência dos referidos créditos, porquanto resultaria em infringência ao princípio da não cumulatividade”.

Esse entendimento é cristalino. A norma da Lei Kandir é “autoaplicável e de eficácia plena”. Ela não necessita de regulamentação estadual para produzir seus efeitos. Qualquer tentativa do Estado de restringir esse direito, seja limitando os destinatários, seja impondo condições extras, é ilegal.

Portanto, o §4º do artigo 125 do RICMS/MT, na medida em que restringe a transferência apenas a empresas interdependentes, está em confronto direto com a lei federal e, por consequência, com a jurisprudência dominante do STJ. Sua aplicação pela administração fazendária estadual é passível de ser anulada via judicial.

Extinção com a reforma tributária
A discussão deixa o campo teórico e assume contornos práticos dramáticos com a extinção do ICMS pela reforma tributária. Afinal, o que ocorrerá com os créditos de ICMS se o tributo deixará de existir em breve?

O artigo 134 do ADCT, incluído pela EC 132/2023, estabelece que os saldos credores de ICMS, existentes no momento de sua extinção, serão compensados em 240 parcelas mensais, ou seja, em 20 anos, corrigidos pelo IPCA.

Essa previsão representa uma perda de liquidez imediata ao contribuinte: um crédito que poderia ser usado ou monetizado hoje se transforma em um recebível de duas décadas, em meio a um ambiente de insegurança com o novo regime tributário.

Diante deste cenário, a transferência do saldo credor nos moldes autorizados pela Lei Kandir e pelo STJ (isto é, para qualquer outro contribuinte do Estado) deixa de ser uma opção e se torna uma estratégia de mitigação de risco e preservação de capital, sendo a última janela de oportunidade de transformar, em fluxo de caixa imediato, um futuro recebível de 20 anos.

Everaldo Magalhães Andrade Junior- é advogado, sócio do escritório AFG & Taques Advogados Associados e mestre em Direito Constitucional pelo IDP.

Foto: reprodução redes sociais

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