"Você vê o STF e não sabe se é suprema corte brasileira ou suíça"

Cotada para ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, a desembargadora Adenir Alves da Silva Carruesco, do Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso, tem críticas duras contra a falta de representatividade feminina e negra nas cortes superiores.

 

Com a aposentadoria da ministra Rosa Weber, o STF conta hoje com apenas uma mulher, a ministra Cármen Lúcia. A tendência é que assim permaneça, pois os mais cotados para ocupar a cadeira hoje são homens.

 

Ao MidiaNews, Carruesco disse que os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – precisam ser um espelho da sociedade brasileiro, que é de maioria negra e parda e de mulheres.

 

“Essa questão da paridade de gênero [...] é uma questão do direito humano de assegurar participação da mulher na sociedade. Você olha para Suprema Corte Brasileira e não sabe se é a Suprema Corte brasileira ou se é a Suprema Corte da Suíça ou de algum país escandinavo”, ironizou.


Em dezembro, a magistrada se tornará a primeira mulher negra a presidir o TRT de Mato Grosso.  

Na entrevista, ela conta brevemente sobre o machismo e racismo vivido até chegar a magistratura e aponta a necessidade ter mulheres dispostas a ocupar espaços de poder. 

  

MidiaNews – Por que a senhora decidiu se candidatar a essa vaga no STF?

 

Adenir Carruesco - A gente sente uma responsabilidade muito maior quando se ocupa um espaço de poder. E cobramos bastante a participação do povo negro nos espaços de poder. Mas a questão é que, muitas vezes, ainda que a porta esteja aberta, a gente olha do lado de fora e não encontra pessoas negras que estão preparadas, dispostas ou empoderadas o suficiente para adentrar.

 

Essa minha perspectiva é no sentido de que há pessoas negras no Brasil que têm condições de assumir os espaços de poder. E é por isso que eu digo que o importante não é o nome, mas a causa.

 

Porque pode ser que aquele que tem o poder na mão, diga o seguinte: "Eu não escolhi um negro, porque não tinha nenhum à disposição". 

 

Então, não é questão de você ser o indicado, é questão de você abrir a porteira. É a questão de se posicionar, de defender uma causa que acredita. Na verdade, quando falo, não falo por mim, falo por todo o povo negro, por todas as mulheres negras, por todas as crianças negras.

 

MidiaNews – O que representaria ao Brasil a sua figura – como mulher negra - assumir uma cadeira na Suprema Corte?

 

Adenir Carruesco – Nós temos uma cultura patriarcal e machista. Basta ver como estão os espaços de poder hoje. Por exemplo, nos tribunais superiores, não chega a 20% de mulheres. E o Brasil tem 51% de mulheres.

 

A pergunta que se faz é: por que as mulheres não estão na mesma proporção nesses espaços de poder? 

 

Quando a gente olha para o Poder Legislativo, no Congresso Nacional, vê uma participação ínfima de mulheres. E muitas vezes, é importante que mulheres que já ocuparam e que alcançaram algum espaço, tragam outras mulheres também. 

 

A primeira mulher a ocupar o cargo de presidência no país [Dilma Rousseff] dizia que depois de eleita muitas mulheres a procuravam na rua e diziam: "Perdão, não votei em você. Mas não votei não porque não acreditava em você, mas porque não acreditava em mim mesma".

 

MidiaNews – Há uma cultura patriarcal.

 

A mulher negra é a mais discriminada, é a que mais sofre violência na nossa sociedade. Então, a mulher negra, quando ocupa um espaço de poder, tem a obrigação de aparecer e de se apresentar

Adenir Carruesco – Sim. Hoje, nas coisas simples a gente percebe a cultura patriarcal. Quando você fala em trabalho doméstico, quem você lembra? Homem ou mulher? É como se o lugar da mulher fosse lá no trabalho doméstico. 

 

Homem também pode ter trabalho doméstico, mas quando você fala homem no trabalho doméstico, você lembra no máximo do motorista ou do jardineiro. Mas aquela que lava, passa, cozinha, cuida dos filhos é a mulher.

 

A sociedade diz: o lugar da mulher é aqui. E aí quando você desce para a questão da mulher negra, piora tudo. A mulher negra é a mais discriminada, é a que mais sofre violência na nossa sociedade. 

 

Então, a mulher negra, quando ocupa um espaço de poder, tem a obrigação de aparecer, de se apresentar, de esticar a mão e de trazer outras mulheres com ela. A questão é a causa, não pode se acomodar. 

 

MidiaNews – Hoje, os mais cotados para a vaga que era ocupada pela ministra Rosa Weber são homens. Acredita que a sociedade perde se houver indicação masculina?

 

Adenir Carruesco - A Corte maior do país, que é o Supremo Tribunal Federal, tem que ser o espelho do Brasil. O Brasil tem que se ver representado nessa Corte. Com a falta de representatividade, perde o Brasil e perde o Mundo. 

 

Essa questão da paridade de gênero, e aqui não estou falando só da questão negra, é um dos tratados internacionais, da Constituição Federal, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é uma questão de direito humano assegurar participação da mulher na sociedade. 

 

Você olha para Suprema Corte Brasileira e não sabe se é a Suprema Corte brasileira ou se é a Suprema Corte da Suíça ou de algum país escandinavo. É importante que tenha a participação da mulher.

 

Também não gosto muito de estereótipos. Não é porque a mulher é mais sensível. Isso acaba prejudicando. São esses estereótipos que ficam ditando qual é o lugar da mulher. A mulher é forte como homem. E se ela quiser também pode ser má, maquiavélica. A mulher pode ser tudo, o que ela quiser.


MidiaNews –Traria um olhar diferenciado? 

 

Adenir Carruesco - A questão de participação da mulher não é porque a mulher traz um olhar feminino.  A mulher tem que estar lá porque é um direito humano, a mulher tem que estar lá porque a Constituição exige. Quem está acima de tudo é o povo, o poder maior, a soberania. E o povo brasileiro, nas ideias consolidadas da Constituição Federal, exige que tenha uma participação paritária de mulher em todos os órgãos de poder. 

 

MidiaNews -  E o que falta para essa realidade ser mudada?

 

MidiaNews

Adenir Alves da Silva Carruesco

"Falta é romper com a hipocrisia", disse a desembargadora Adenir Carruesco sobre machismo nos Poderes

Adenir Carruesco - Para mim o que falta é romper com a hipocrisia. Por que não tem uma única pessoa que ocupa espaço de poder, seja Executivo,  Legislativo, ou Judiciário, que se diz contra essa pauta da igualdade de gênero, de igualdade racial. Não tem um que se diz contra. Todos são favoráveis.

 

E por que que quem tem o poder de nomear dá preferência para o homem ou para o branco? É um discurso que não se realiza na prática. O que a gente precisa é vencer essa hipocrisia social, é vencer essa esquizofrenia social.

  

MidiaNews - A senhora já agendou algum encontro com o presidente Lula? Tem alguém que está tentando intermediar esse possível encontro?

 

Adenir Carruesco – Não existe uma lista, não existe candidato. E, aí, muitos grupos cogitaram o meu nome. Eu senti essa responsabilidade social de me apresentar pela questão da causa. E a partir desse momento, contei com o apoio de vários segmentos, como a OAB de Rondonópolis, a Associação dos Magistrados de Cuiabá, toda o Legislativo de Mato Grosso, e também Brasília, alguns deputados, alguns senadores. 

 

Nas vezes que tenho atividades institucional em Brasília e tenho a oportunidade,  chego e me apresento: “Sou a desembargadora Adenir Carruesco, que tem sido cotada para vaga no Supremo”. Porque o povo negro tem que se apresentar. 

 

E eu estou achando superinteressante é que, depois desse movimento, vejo outras mulheres negras que estão se apresentando também. As pessoas precisam saber que é preciso se apresentar, que precisam bater no peito e dizer: “Eu estou aqui”. Só o fato de eu ter me apresentado é uma vitória muito grande.

 

Quando eu vi estampado em alguns jornais nomes de outras mulheres negras como cogitadas, achei fantástico. Não existe uma competição entre as mulheres negras. Existe uma causa só, uma torcendo pela outra, porque estão todos torcendo pela causa. 

  

MidiaNews - A senhora é uma mulher negra que agora vai presidir um Tribunal, algo raro no Brasil. Como se sente? 

 

Adenir Carruesco – É uma missão muito grande. Esse tribunal, nós, naturalmente, já chegamos à paridade de gênero. Somos quatro desembargadoras e quatro desembargadores. As portas do Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso, como é próprio dos tribunais regionais, sempre estiveram abertas para mulheres, para negros, para todos. 

 

O problema é: a porta está aberta, mas tinha negro do lado de fora? Essa é a questão. Não tinha. Tanto não tinha que eu fui a primeira juíza preta e chego como a primeira desembargadora preta desse tribunal. E a questão é que eu estou sempre sozinha. Eu estou sempre isolada.

 

Quantas mulheres negras pretas que tinham feito o curso de direito, que tinha a condição de entrar naquele momento? A opressão vem de lá atrás. Do ensino fundamental. Há um problema do trabalho infantil lá atrás. É o povo negro que mais sofre com essa exploração do trabalho infantil.

 

Quando a gente fala dessa desigualdade social que fecha as portas, se for na linha mais baixa da pobreza, 75% são os negros. 

 

Vá em um restaurante renomado e faça esse exercício: senta e olhe a sua volta. É comum que o negro esteja servindo. Há alguma coisa errada com o nosso país.

 

MidiaNews - Como é que a gente muda essa realidade?

 

É muito importante pensar que a gente muda com trabalho, com conscientização e, principalmente, com muito amor

Adenir Carruesco – É muito importante pensar que a gente muda com trabalho, com conscientização e, principalmente, com muito amor. Não se trata de uma guerra, uma luta, é uma questão de conscientização. 

 

E é interessante que a solução que se adota nos Estados Unidos ou na França, talvez não sirva para o nosso País. O Brasil tem complexidades diferentes e precisa de soluções diferentes. E é por isso que toda a sociedade brasileira, nessa pluralidade de pensamento, tem que estar presente na mesa para a gente buscar soluções que sejam adequadas.

 

MidiaNews – A senhora falou de amor e o termo pode passar uma questão de passividade. Não é o momento de o País ser mais agressivo e incisivo na luta contra o racismo e o machismo?

 

Adenir Carruesco – Quando eu falo em amor, não é o amor romântico. É o amor que faz as coisas com racionalidade, que faz o que precisa ser feito, que está no lugar onde deve estar. São decisões fortes, são decisões cirúrgicas. 

 

Eu estava em Brasília uma vez, com um grupo negro, e me questionaram sobre o que eu achava das cotas raciais. Eu disse: Eu sou contra as cotas raciais. Eles se assuntaram e disseram: Como? E eu disse: Eu sou a favor de uma universidade inteira de negros.

 

Eu acho que devia, por exemplo, ter faculdades regionais inteiras ligadas ao empoderamento, ao crescimento, ou seja, uma coisa mais agressiva ainda. A gente não vai tirar a vaga de outras pessoas. 

 

A gente está vendo que ainda precisa avançar muito. Estamos avançando, vamos reconhecer. Só que estamos indo a passos lentos. De repente, demorará mais 50 anos ou 100 anos para a gente chegar num patamar aceitável. A gente precisa de algumas políticas muito mais agressivas.

 

MidiaNews - A senhora é filha de camponeses e estudou em escola rural. Como foi vencer tantas barreiras para se tornar uma desembargadora do Trabalho? 

 

Adenir Carruesco  - Eu costumo contar essa história, porque no Brasil não é comum que a pessoa saia lá da zona rural e consiga chegar em espaços de poder. E a vida começou assim, como a de muitos outros brasileiros. 

 

É uma história muito interessante, porque todos que nasceram na minha família, que nasceram naquela mesma época, ou os que nasceram antes de mim, nenhum deles conseguiu furar a bolha. Todas as minhas tias trabalharam como empregadas domésticas. Meu avô, por exemplo, trabalhou até morrer no campo. 

 

O que fez a diferença na minha vida? A minha mãe, apesar de não ter tido estudo, tinha consciência de que era muito importante o filho estudar

Meu avô e minha avó morreram analfabetos e minha mãe e meu pai nunca foram a uma escola formal e até hoje são analfabetos funcionais.

 

E o que fez a diferença na minha vida? A minha mãe, apesar de não ter tido estudo, tinha consciência de que era muito importante o filho estudar. Ela fez todo o sacrifício para que eu não precisasse trabalhar enquanto criança.

 

MidiaNews – A senhora era filha única?

 

Adenir Carruesco - Eu tenho um irmão mais novo. Quando meu pai casou com minha mãe já tinha um filho de outro casamento, que é meu irmão mais velho. Mas o tratamento foi o mesmo.

 

E é preciso entender também que existe uma parcela do chamado livre arbítrio, as escolhas pelas referências que você tem, da sociedade onde você vive, pela questão de autoestima.

 

Todo mundo fala: ‘Se você chegou, todo mundo poderia ter chegado’. Não é bem assim. Há um racismo estrutural, e as pessoas percebem as suas dores de forma diferente. Eu sofri dores na minha vida que outra pessoa, de repente, não tivesse conseguido se levantar.

 

Atos de racismo explícito para uma criança. Como é que apesar disso tudo uma criança  consegue desenvolver a autoestima? A sociedade faz tudo para que não acredite em você mesma, para que você acredite que é inferior. Faz tudo para acreditar que você é uma pessoa feia, que não merece estar onde está. Conseguir vencer isso não é tão fácil. 

 

MidiaNews – Em sua visão, não é só autodeterminação?

 

Adenir Carruesco - Não é uma questão só de mérito, porque são diferente as referências. O mundo que você vive enquanto pessoa negra e o mundo que você vive enquanto pessoa branca. 

 

Eu tive o amor incondicional dos meus pais. Isso é muito forte. Por isso que a questão da família é uma coisa determinante. A primeira questão é o amor incondicional dos pais. E aí a consciência dos pais de que a criança precisa sonhar, brincar, e que a criança não tem que trabalhar. O mundo todo pode estar contra mim, mas eles estão comigo. Isso é uma fortaleza.

 

Eu sou uma pessoa que tem muita autoestima, que não aceita o que as pessoas querem dizer. Eu não dou o poder de ninguém me ofender. Eu me empoderei de tal forma que ninguém me atinge. 

 

MidiaNews

Adenir Alves da Silva Carruesco

A desembargadora Adenir Carruesco, que contou que sofreu episódios cruéis de racismo

MidiaNews - A gente está se aproximando do Dia Nacional da Consciência Negra, a senhora acha essa datas importantes ou em algum momento pode se tornar lugar comum? 

 

Adenir Carruesco - Eu acho interessante que a gente tem uma data para marcar alguma coisa como importante para a nossa sociedade. Agora, o fato é que, muitas das vezes, a gente cria um feriado e todo mundo diz: “Oba, vai ter feriado tal dia e eu vou poder ir para a cachoeira, fazer um churrasco”.

 

Quantas pessoas param no dia da consciência negra para pensar no problema? Se esse feriado não traz no espírito de cada brasileiro um momento de reflexão, ele é só mais um feriado. E já temos feriados demais no País, não tem necessidade de feriado. 

 

Agora, cabe a nós que estamos em determinadas posições fazer com que esse feriado tenha um significado. Nesses dias, é preciso conscientizar a população que existe ainda um problema e não temos como fechar o olho. E depois, o que é que se pode fazer para a gente mudar isso. E não se muda do dia para a noite. É preciso construir uma resposta de mudança. 

 

O feriado é importante? É importante, mas a gente tem que fazê-lo importante, porque senão é só mais um feriado para tomar cerveja.


Fonte: Midianews/ Foto: reprodução